O FISL sempre foi o maior alicerce do Software Livre no Brasil e quiçá, do mundo. Com mais de uma dezena de milhares de participantes, ele sempre foi a materialização de que o Software Livre estava dando certo, conquistando corações e mentes, crescendo e revolucionando a sociedade. Lembro muito bem da minha excitação de ir ao FISL 1, de ter ficado, acidentalmente no mesmo hotel dos palestrantes, de ver de perto meus heróis e modelos que tinham a coragem de entender o aspecto revolucionário que a liberdade do software traria à sociedade. Finalmente eu estava entre pares, que entendiam, respiravam e militavam pelos mesmos ideais. Finalmente eu podia dizer GNU ou Linux sem receber uma careta de desentendimento como resposta.
Todos concordavam que o Software Livre era um movimento político e social que tem por objetivo empoderar o usuário final através da liberdade do software. Stallman era o guru inquestionável e a GPL a carta magna dessa revolução. Não havia nenhuma dúvida e o inimigo a ser combatido, também era evidente: o software não livre, viesse de onde viesse. Naquele tempo o indiscutível representante do “mal” era a Microsoft. Empresas como Google eram pequenas de mais para serem consideradas uma ameaça.

Ao longo desses 18 anos o movimento tem sido vitima de uma ação de sabotagem planejada, coordenada e levada a cabo de forma sistemática pela OSI. O objetivo é extirpar o conteúdo ideológico do movimento: Software Livre deve significar apenas a liberdade de acesso ao código, nada mais. A primeira estratégia foi criar um outro nome para isso: Open Source. Assim falava-se em liberdade e desenvolvimento compartilhado, mas sem o conteúdo revolucionário, pueril, irresponsável e ideológico. A áurea de maturidade vinha embutida em termos como negócios, mercado, corporações, soluções e outros jargões do “business”. A segunda estratégia foi associar o seu nome ao Software Livre como sendo sinônimos. Isso foi feito apelando para os valores do próprio movimento: amizade, respeito, integralidade, universalidade. “Juntos somos mais fortes” dizem, “lutamos todos pelo mesmo objetivo” dizem.

Com o objetivo claro de não confrontamento aos interesses empresariais e de mercado, foi fácil receber apoio financeiro e assim fortalecer suas representações organizadas, grupos de usuários, propaganda, participação em eventos e todo tipo de promoção advinda de uma conta bancária recheada. Enquanto a FSF e os G/LUG’s vivem a base de doações de indivíduos que acreditam que podem e devem mudar o mundo, a OSI e suas representações recebem apoio empresarial. Entre as ações mais óbvias estão a remoção do termo GNU do nome do sistema operacional, promovendo que se diga somente Linux, forçando a marca do Pinguim como logotipo de Software Livre em detrimento do GNU. Outra ação é a disseminação de termos como FOSS ou FLOSS que colocam Open Source e Software Livre como idênticos.
A força dessas ações é imensa e foi feita sem nenhuma pressa ou açodamento. Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. Lentamente corações e mentes foram sendo conquistados. Até o próprio Stallman se deixou levar e, apesar dele esclarecer que OSI e SL não são iguais, ele mesmo diz que o “OpenSource não é nosso inimigo, o software não livre é”. Santa ingenuidade. Tanta, que mesmo depois de tantas evidências, a FSF decidiu, em pleno 2016, ajudar nosso “irmãos” na organização do encontro OSI nos USA. Que triste.
Gradativamente os conceitos OSI vão permeando e fragilizando a força ideológica do Movimento Software Livre. Defende-se a aceitação de alguma presença de softwares não livres com o objetivo de popularizar o uso do “Linux” pelos usuários comuns, aceita-se o financiamento de empresas não alinhadas para o desenvolvimento de softwares e a realização de eventos, converte-se empresas diabólicas como a IBM, Google e Facebook em parceiras do movimento, fragilizam-se os critérios de seleção de trabalhos para os maiores eventos do mundo, suaviza-se o discurso ideológico nas intervenções na mídia tradicional. Pequenas ações comunitárias começam a ser aceitas: os grupos de usuários já podiam usar as ferramentas do Google sem constrangimento. Tudo até culminar com o fim das comunidades de usuários em seus espaços independentes e serem todos sugados para dentro do Facebook. “Have fun” passou a ser o mantra divulgado pelo Linus Torvalds e amplamente aceito pela comunidade Software Livre.
Assim a horda de nerds, cavaleiros da nova ordem global, os revolucionários digitais, foram convertidos em mais uma comunidade dentro da plataforma de controle em escala global. Assim a massa de militantes ideológicos foram convertidos em OSIstas. Um bando de nerds que estavam muito mais interessados em se divertir do que em mudar o mundo. E esse mantra foi divulgado, incentivado e assumido por velhos ativistas, que perceberam as mudanças, mas decidiram embarcar na onda em vez de fazer um contra-ponto. A cada “Linux” sem explicação, a cada conta do Gmail, a cada “like” do Facebook, a cada novo iPhone, foram eles os responsáveis pela popularização dessa versão suave de Software Livre que é atual “status quo”.
É tanto que hoje “Software Livre” já é sinônimo de “Open Source”. Isso é tão evidente que numa entrevista recente ao TED o próprio Linus Torvalds diz “Software Livre, que era como se chamava o Open Source, naquela época”, dando a entender que Open Source é o novo nome do Software Livre, ou seja, que são a mesma coisa, mas agora com outro nome.
Essa transformação foi catalizada, também, pelo FISL e pela ASL – Associação do Software Livre. Quando advertidos dos riscos, seus dirigentes sempre argumentaram de que a diversidade de ideias e atores era mais importante e que não se deveria “radicalizar”, como se a convivência com opositores ao próprio movimento fosse algo positivo. Assim o FISL captou recursos com empresas como Google, IBM, Oracle e outras gigantes do software não livre, representantes da ideia de que Open Source e Software Livre são a mesma coisa. Ao mesmo tempo permitiram uma grade de palestras cada vez menos ideológica e menos comprometida com a revolução social e mais alinhada com os anseios do mercado. Assim, no decorrer da última década, o FISL ajudou a desmobilizar ideologicamente o movimento, enfraqueceu a militância e ajudou a estereotipar o termo Software Livre.
Qualquer semelhança com a atual situação política, na qual o próprio PT tem sua responsabilidade, não é mera coincidência. No plano político o PT, na mesma década, adotou um discurso conciliatório, buscou uma linha “do meio”, enfraqueceu seu viés ideológico, desmobilizou a militância e entregou muito anéis aos interesses do mercado. Da sua representação da esquerda socialista a “compadres” da ala mais fisiológica do PMBD. Não nos deixemos iludir, Dilma, Lula e o PT firmaram sim acordos inimagináveis se associando ao que há de mais golpista, reacionários, bandidos e retrógrados da nossa república. Tudo em nome da governabilidade e dos grandes planos de transformação social. O FISL e a ASL fizeram o mesmo no campo da ideologia do Software Livre, se associaram e pretendem expandir a associação com o que há de mais vil e antagônico ao Software Livre.
Este ano, o FISL 17 periga não acontecer. A crise econômica afugentou os patrocinadores governamentais e também os privados. Num momento de instabilidade econômica os participantes decidiram guardar suas economias ou não se endividar para ir a até Porto Alegre, como de costume. Então a ASL lançou uma campanha de doação na comunidade para tentar angariar fundos e viabilizar o evento. Afinal de contas somos mais de uma dezena de milhares de participantes anuais, mas apenas 166 voluntários se prontificaram em ajudar. E esse é o reflexo de uma militância enfraquecida, ela não oferece o respaldo necessário. Afinal de contas, durante anos, os militantes do Software Livre foram convertidos em OSIstas, e os OSistas não militam, ele fazer “business” e o FISL é um péssimo negócio. E agora é também um péssimo palco para ativismo.
O fato é que o evento não está conseguindo se viabilizar e momentos de desespero exigem medidas desesperadas, certo? “Iniciamos uma aproximação com a Microsoft e se vierem para o FISL para falar e apresentar softwares livres, estão dentro.” foi a mensagem da diretoria na lista de discussão da ASL. Assim os contatos com a Microsoft já foram inciados no sentido de tê-la como patrocinadora Super Platinum do FISL 17 e poder, assim, viabilizar o evento.
Lembremos que antes da Microsoft, o FISL recebeu de quase todas as demais empresas de tecnologia que representam o que há de mais antagônico ao Software Livre. Então qual seria o grande constrangimento de ser patrocinado pela gigante de Redmond? Apenas a máscara que cai e se quebra em milhões de pedaços. Nunca mais será possível usá-la. A Microsoft é mundialmente famosa por seus acordos escusos, dump de mercado, desrespeito às legislações, invasão de privacidade, corrupção e muito mais. Ela é de uma época em que empresas poderosas não se preocupavam com manter uma imagem moderna e limpa, como fazem o Google e a Apple. Eles jogam sujo e se vangloriam disso. E todos os líderes e principais expoentes do FISL e da ASL sabem bem disso. O grande problema não é ter a Microsoft como patrocinadora do FISL, mas sim, ter a ASL considerando essa hipótese.
O “Software Livre” morreu porque essas duas palavras não significam mais um movimento social e político. Elas foram desvirtuadas e agora tem o mesmo significado de “Open Source”. As forças interessadas conseguiram fazer isso com outros conceitos como “Hacker” que de nerd inteligente e desafiador, se transformou em bandido cibernético. Perdemos essa guerra. Hora de nos reinventarmos, hora de mudar de rumo, de foco, de ação e de abordagem. Hora de resgatar até mesmo o Stallman.
Aqui fica meu apelo à ASL e ao FISL: não deem esse passo. Se for necessário não façam FISL este ano. Reagrupem, repensem a militância, retomem o caminho certo, separem os ativistas dos OSIstas. Sempre é tempo de recomeçar. Caso contrário será o fim do FISL e o nascimento definitivo do FICA – Fórum Internacional do Código Aberto.
Saudações Livres!

Artigo escrito pelo Anahuac
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