A nostálgica história do modem dial-up no Linux: 5 lições que moldaram a conectividade moderna

Escrito por
Emanuel Negromonte
Emanuel Negromonte é Jornalista, Mestre em Tecnologia da Informação e atualmente cursa a segunda graduação em Engenharia de Software. Com 14 anos de experiência escrevendo sobre...

Quando cada chiado era um passo rumo à liberdade digital.

Antes da fibra óptica, do Wi-Fi e da internet a cabo, havia um som que anunciava o futuro. Um barulho estranho, metálico e ritmado: piiiii… krrshhh… skreeeee…. Esse era o sinal de que seu modem dial-up Linux estava tentando estabelecer uma conexão. Cada chiado tinha um propósito técnico. Era como ouvir uma conversa secreta entre máquinas tentando se entender.

No vídeo abaixo, ouça o som do modem discando para relembrar:

Essa era da internet discada Linux foi marcada por desafios técnicos, soluções engenhosas e muita paciência. Mas também foi um campo fértil de aprendizado e criatividade. A conectividade Linux primórdios não foi apenas o começo de uma era digital — foi uma prova de fogo que forjou habilidades e valores que o mundo da computação ainda carrega hoje.

A internet nos primórdios: conectando-se por linhas telefônicas

Nos anos 1990, a internet chegava pela linha telefônica. Não havia internet enquanto o telefone estivesse em uso. A navegação era feita com navegadores como o Netscape Navigator ou, no caso do Linux, muitas vezes com o Lynx, que era baseado apenas em texto. Páginas demoravam para carregar. Imagens levavam minutos. Mas a conexão representava liberdade.

Além da web, havia BBSs (Bulletin Board Systems), salas de bate-papo em IRC, e fóruns acessados por e-mail. A velocidade comum dos modems variava entre 14.4 kbps e 56 kbps. Isso exigia paciência, mas também estimulava soluções criativas para maximizar o pouco que se tinha.

Modem dial-up no Linux: como o sistema reconhecia o hardware

No Linux, o modem era visto como um dispositivo serial — geralmente acessado como /dev/ttyS0, /dev/ttyS1 ou /dev/ttyACM0. O sistema não criava /dev/modem automaticamente. Esse era apenas um link simbólico criado pelo próprio usuário, como no exemplo:

ln -s /dev/ttyS1 /dev/modem

Tipos de modems

  • Externos (RS-232): fáceis de usar, conectados à porta serial. Permitiam diagnóstico visual e auditivo.
  • Internos (PCI): mais baratos, mas exigiam suporte no kernel.
  • Softmodems (Winmodems): dependiam do processador e de drivers proprietários, raramente funcionavam no Linux. Como disse Greg Kroah-Hartman, “suportá-los era como reverter engenharia em uma caixa-preta”.

O som do handshake: diagnóstico auditivo de conexão

O som do modem durante a discagem não era aleatório. Era o processo de handshake, uma negociação entre dois modems para definir velocidade, modulação e controle de erros. Cada ruído indicava uma etapa dessa conversa técnica.

Usuários experientes sabiam, só de ouvir, se a conexão teria sucesso. Se o som parava cedo, era sinal de que algo deu errado — linha ruidosa, modem incompatível ou provedor fora do ar.

PPP: o protocolo que colocava o Linux online

A conexão era feita pelo PPP (Point-to-Point Protocol), que transformava a linha telefônica em um canal IP. No Linux, isso era feito com o comando pppd, que gerenciava autenticação e roteamento.

Arquivos essenciais:

  • /etc/ppp/options: configurações como DNS e roteamento.
  • /etc/ppp/chap-secrets e pap-secrets: armazenamento de credenciais.

Curiosamente, nas primeiras versões do Slackware e Debian, o pacote ppp não vinha instalado por padrão. Em alguns casos, era necessário recompilar o kernel com suporte a PPP ativado.
Fonte: PPP-HOWTO Debian

Depoimento histórico (comp.os.linux.networking, 1995):
“Se seu provedor usa PAP e você está no Slackware, é obrigatório recompilar o pppd com os parâmetros corretos, senão ele simplesmente não autentica.”

Chat scripts: o robô que discava por você

O modem precisava executar uma sequência exata: discar, aguardar sinal, enviar login e senha. Tudo isso era feito com chat scripts, que automatizavam esse processo.

ABORT BUSY ABORT 'NO CARRIER' ABORT ERROR
'' ATZ
OK ATDT12345678
CONNECT ''
Login: meuusuario
Pssword: minhasenha

Para conectar:

sudo pppd call meuprove

Saída simulada:

Serial connection established.
Using interface ppp0
local  IP address 192.168.1.10
remote IP address 10.0.0.1
primary   DNS address 200.204.0.10

Para iniciantes: o que tudo isso significava?

  • Modem: tradutor digital que transforma dados em som.
  • PPP: protocolo para conversar com o provedor.
  • Chat script: automação que digita por você.
  • pppd: gerenciador da conexão no Linux.
  • ttyS0: porta serial, equivalente à COM1 no Windows.
  • resolv.conf: define os servidores DNS usados na conexão.

Desafios técnicos: autenticação, bugs e incompatibilidades

Muitos provedores usavam CHAP com servidores RADIUS, o que exigia configurações avançadas no pppd. Quando mal configurado, o sistema entrava em loop infinito de autenticação, como nos logs abaixo:

sent [LCP ConfReq id=0x1]
rcvd [LCP ConfAck id=0x1]
sent [PAP AuthReq id=0x1 user="usuario"]
rcvd [PAP AuthNak id=0x1]
Connection terminated.

Esses desafios ensinaram o valor dos logs e da depuração precisa. Um aprendizado técnico que moldou a cultura Linux.

Usando o minicom: diagnóstico antes de automatizar

O minicom era uma ferramenta indispensável. Ele permitia interagir diretamente com o modem:

ATZ
OK
ATDT12345678
CONNECT 33600

Era possível testar se o modem funcionava, se a linha estava ativa e até fazer login manual no provedor. Essa abordagem direta formava usuários técnicos confiantes.

Táticas de sobrevivência na era dos pulsos

No Brasil, planos de pulso cobravam por tempo. Para economizar, muitos usavam scripts que desconectavam a internet após 4m55s — antes da virada do próximo pulso telefônico.

Além disso, usuários avançados usavam o comando wget para baixar páginas e navegar offline com o navegador Lynx:

wget -r -k -l 1 https://www.example.com

Depois, desconectavam e liam os sites no modo texto.

Esses truques mostravam como mesmo com pouca banda e alto custo, a criatividade abria caminhos.

Cooperação comunitária: scripts brasileiros para todos os provedores

A falta de suporte oficial levou usuários a criar e compartilhar scripts para provedores brasileiros como iG, Terra, Mandic e UOL. Esses scripts funcionavam como drivers informais e eram distribuídos em fóruns como o Viva o Linux e listas do BR-Linux.

Era a comunidade brasileira resolvendo, colaborativamente, os problemas de conectividade.

GUI no Linux: tentativas de facilitar a discagem

Embora a linha de comando fosse dominante, surgiram interfaces como:

  • KPPP: interface do KDE, inspirada no discador do Windows.
  • WvDial: automatizava a busca e configuração de modems.
  • Discador Kurumin/Conectiva: ferramentas nacionais que ajudaram milhares de brasileiros a usar Linux.

Carlos Morimoto, criador do Kurumin, declarou:

“Nosso foco era ajudar o usuário comum a se conectar. Modems eram o principal meio de acesso no Brasil.”
Fonte: Kurumin – Guia do Hardware

O que o modem dial-up Linux nos ensinou

  1. Ler logs com atenção era uma habilidade essencial.
  2. Automação por scripts nasceu da necessidade.
  3. A colaboração era a principal documentação.
  4. A escuta do handshake era tão importante quanto a configuração.
  5. Conectar-se era um ato técnico e emocional.

O legado técnico que ainda vive

  • PPP ainda é usado em VPNs modernas como L2TP.
  • Sistemas embarcados usam comunicação serial como os modems antigos.
  • Scripts e logs continuam sendo ferramentas vitais.
  • O espírito de superação e personalização ainda vive no Linux em torradeira.

Conclusão

A história do modem dial-up no Linux não é apenas sobre tecnologia antiga. É sobre engenhosidade, colaboração, resiliência e aprendizado profundo. É sobre fazer muito com quase nada. A internet discada Linux moldou uma cultura técnica que permanece viva.

A conectividade Linux primórdios mostrou que, mesmo diante de obstáculos técnicos, é possível inovar, compartilhar e evoluir. E que, às vezes, ouvir o som de um modem tentando se conectar é tudo o que precisamos para lembrar de onde viemos — e para onde ainda podemos ir.

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