A Canonical, empresa por trás do Ubuntu, é amplamente reconhecida por sua contribuição ao mundo do código aberto. No entanto, o modelo de negócios adotado por ela não é puramente baseado em software livre. Ao contrário, a Canonical utiliza uma estratégia conhecida como open core — um modelo híbrido que combina componentes open source com funcionalidades ou serviços proprietários, geralmente voltados ao mercado corporativo.
Este artigo detalha como a Canonical aplica esse modelo, quais são os exemplos práticos dessa abordagem, e analisa os impactos para a comunidade de código aberto.
O que é o modelo open core?
O open core é uma abordagem de negócios em que a base de um software é open source, mas recursos adicionais, serviços premium ou integrações específicas são fechados ou licenciados de forma restrita.
Esse modelo tenta equilibrar dois mundos:
- Colaboração e inovação comunitária por meio do código aberto
- Sustentabilidade financeira por meio da oferta de produtos e serviços pagos
Empresas como GitLab, Elastic, MongoDB, Red Hat (com algumas nuances) e Canonical adotam variações do open core.
Como a Canonical aplica o modelo open core
A Canonical promove o Ubuntu como um sistema operacional livre e gratuito — e, de fato, ele é. Mas ao redor dessa base estão diversos produtos e serviços que seguem a lógica do open core:
1. Multipass (até a versão 1.16.0 RC3)
- O Multipass, ferramenta leve para criar VMs Ubuntu em Windows, macOS e Linux, tinha partes proprietárias para suporte a sistemas não-Linux.
- A versão 1.16.0 RC3 tornou toda a base open source, eliminando essa barreira. Mas até então, o projeto era um exemplo clássico de núcleo aberto com partes fechadas.
2. Landscape
- Ferramenta de gerenciamento de infraestrutura Ubuntu em larga escala.
- É comercial e proprietária. Não está disponível para instalação livre como o Ubuntu.
- Oferece funcionalidades exclusivas para empresas, como monitoramento centralizado, atualizações em massa e suporte corporativo.
3. Livepatch
- Serviço que permite aplicar atualizações de kernel sem reinicializar o sistema.
- É gratuito para uso pessoal limitado a 3 máquinas, mas o serviço completo é pago para uso corporativo.
4. Snap Store (backend)
- O cliente Snap (snapd) é open source.
- No entanto, o servidor da Snap Store (o backend que gerencia os pacotes e o processo de publicação) é fechado e controlado exclusivamente pela Canonical.
- Isso gera críticas na comunidade por centralização e falta de transparência, mesmo sendo um ecossistema supostamente aberto.
5. Suporte técnico e certificações
- A Canonical oferece suporte técnico comercial e serviços como certificação de hardware e clouds, o que representa grande parte da receita da empresa.
Por que a Canonical adota esse modelo?
A Canonical, como qualquer empresa, precisa ser financeiramente sustentável. A manutenção do Ubuntu, o desenvolvimento de ferramentas, o suporte a arquiteturas e a inovação tecnológica exigem recursos.
O modelo open core permite que a Canonical:
- Financie o desenvolvimento de software livre com receita corporativa
- Mantenha controle sobre elementos estratégicos (como a Snap Store)
- Construa soluções empresariais com alto valor agregado
- Ofereça suporte e integração certificados para empresas
Impactos para a comunidade open source
Pontos positivos:
- O modelo garante a continuidade de projetos open source como o Ubuntu.
- Muitas ferramentas desenvolvidas pela Canonical são, de fato, completamente abertas e recebem contribuições da comunidade (como o LXD, Juju, MAAS).
- A comunidade se beneficia de ferramentas gratuitas e de alto nível para uso pessoal e educacional.
Pontos negativos e críticas:
- Alguns serviços essenciais são fechados, o que reduz a autonomia da comunidade (como o backend do Snap).
- A centralização de decisões em torno da Canonical pode gerar conflitos de interesse com o espírito da governança comunitária.
- O modelo open core cria dependência comercial para empresas que desejam usar o Ubuntu de forma mais robusta.
Comparação com outras empresas open source
Empresa | Modelo | Produtos open source | Componentes fechados / pagos |
---|---|---|---|
Canonical | Open core | Ubuntu, Snapd, LXD, etc. | Landscape, Snap Store backend, Livepatch |
Red Hat | Open source com suporte pago | RHEL (via CentOS Stream, Fedora) | Suporte técnico e certificações |
GitLab | Open core | GitLab CE | GitLab EE (features premium) |
Elastic | Open core / BSL | Elasticsearch OSS | Elastic Cloud, plugins comerciais |
Conclusão: equilíbrio entre liberdade e sustentabilidade
O modelo open core adotado pela Canonical não é uma traição ao open source — mas sim uma estratégia para manter vivo e competitivo um ecossistema que exige investimento contínuo.
Embora gere debates válidos sobre centralização, governança e transparência, o modelo permitiu à Canonical entregar um sistema como o Ubuntu a milhões de pessoas, gratuitamente, por mais de 20 anos.
Para usuários finais, a maior parte do ecossistema Canonical permanece aberta e acessível. Para empresas, o custo entra como parte de um modelo de confiança, suporte e estabilidade, que sustenta o crescimento contínuo do código aberto.