A frase “o fim da última geração de programadores” soa como um anúncio dramático, uma espécie de profecia para o futuro da tecnologia. Vem do CEO Éric Machado, um veterano com quase 30 anos de atuação em TI, que recentemente publicou um artigo onde defende que a profissão tradicional de programador está com os dias contados. Segundo ele, o avanço acelerado da Inteligência Artificial (IA) e das plataformas low-code/no-code transformarão radicalmente o modo como criamos software, relegando o ato de digitar código para máquinas mais rápidas, mais baratas e mais confiáveis. Mas será que essa visão vale igualmente para todos os cantos do desenvolvimento de software, especialmente para o mundo complexo e profundo do Kernel Linux e outros projetos de código aberto?
A tese do fim do programador tradicional

Éric Machado sustenta que a tarefa clássica do programador, aquela que envolve escrever linhas e mais linhas de código, já está sendo absorvida pela automação e pela IA. Baseando-se em relatórios de peso — como o da Gartner, que prevê que até 2026, 80% dos novos aplicativos corporativos serão desenvolvidos usando plataformas low-code ou assistentes baseados em IA; o da McKinsey, que indica que até 60% do trabalho de programação pode ser automatizado; e o da Forrester, que prevê um declínio nas funções dedicadas à codificação manual até 2030 — ele afirma que simplesmente não fará mais sentido contratar pessoas para executar tarefas que a máquina faz melhor e mais rápido.
Para Machado, essa transição não é um apocalipse, mas uma evolução: a mão de obra humana se deslocará do executor para o estrategista, ocupando cargos como arquiteto de soluções digitais, engenheiro de IA e estrategista multi-cloud. Assim como outras profissões operacionais desapareceram diante da automação (datilógrafos e operadores de telefonia são exemplos), o programador tradicional seguirá o mesmo caminho. A habilidade central passará a ser a capacidade de formular boas perguntas, traduzir problemas complexos em decisões estratégicas e liderar equipes em ambientes digitais cada vez mais intricados.
Segundo o CEO, o horizonte para o futuro da programação com IA é, então, uma redefinição do papel humano — menos foco na digitação e mais na direção e estratégia.
Uma análise crítica: aplicações vs. sistemas
Mas será que essa visão abarca a complexidade do desenvolvimento de software como um todo? A resposta curta para quem está nas camadas mais baixas do software — aquele trabalho bruto e minucioso, escrevendo drivers, otimizando subsistemas, ajustando o scheduler do kernel, ou mexendo em protocolos de rede — é “não”. Para essas áreas, o cenário é muito diferente.
Enquanto a IA e as plataformas low-code/no-code são ferramentas poderosas para acelerar o desenvolvimento de aplicações de negócio — aquelas que lidam com dados, interfaces, regras de negócio — elas ainda não conseguem abraçar a complexidade e a profundidade do desenvolvimento de sistemas. Projetos como o Kernel Linux exigem um conhecimento profundo de hardware, da interação entre software e máquina, um raciocínio investigativo para caçar bugs difíceis (como race conditions), e uma compreensão de performance e segurança que vai além da geração automática de linhas de código.
A automação de tarefas mais superficiais é um caminho natural e inevitável, mas a multiplicidade de variáveis, o controle do comportamento em tempo real, e as nuances da arquitetura física de um sistema ainda exigem programadores extremamente especializados. Assim, a função do programador — longe de acabar — vai se especializar e se aprofundar ainda mais nessa camada crítica.
O impacto da IA para os programadores de sistemas
É claro que o avanço da IA não passará despercebido também para os sistemas mais complexos. Ferramentas inteligentes já são usadas para sugerir soluções, gerar trechos de código, automatizar testes e auxiliar na documentação. Contudo, o papel humano nesses processos permanece central, especialmente nos níveis elevados de revisão, análise crítica e integração complexa.
A substituição pura e simples de programadores de sistemas por máquinas ainda é um horizonte distante, dada a atual limitação das IAs em interpretar e gerenciar ambiguidades, riscos e contextos profundos que surgem no desenvolvimento do kernel e software open source. Além disso, a comunidade Linux e outras comunidades open source valorizam a transparência, a auditabilidade e o controle detalhado, que exigem entendimento nativo do código, algo ainda muito fora do alcance das soluções automatizadas.
Conclusão: evolução profissional e especialização
A previsão de Éric Machado — que já nasce uma “última geração de programadores” no modelo tradicional — é uma provocação valiosa para o mercado. De fato, é inegável que o futuro da programação com IA apontará para um cenário onde os programadores serão mais estrategistas do que digitadores, focados em liderar projetos, integrar soluções e definir arquiteturas digitais complexas.
Entretanto, essa transformação será desigual e segmentada. Enquanto muitas funções relacionadas ao desenvolvimento de aplicações de negócio migrarão para plataformas low-code e assistentes de IA, o desenvolvimento de software de sistema continuará a exigir mentes altamente especializadas, capazes de operar nas profundezas do kernel, dos drivers e da infraestrutura crítica.
Mais do que o fim do programador, o que veremos é a especialização de um grupo ainda mais seleto, engajado em tarefas que demandam criatividade técnica, raciocínio investigativo e domínio profundo do sistema. A digitação de código, por sua vez, se tornará a parte executiva e automatizada de um processo muito maior — onde o diferencial passa a ser a capacidade de dar direção e guiar a inovação.