A equipe do Godot acaba de liberar a Godot 4.5 (15 de setembro de 2025) — uma atualização que abraça um tema simples e poderoso: “tornar sonhos acessíveis”. Guiado por essa ideia, o projeto entrega um pacote generoso de novidades que vai desde efeitos gráficos avançados (obrigado, stencil buffer) até um marco histórico de inclusão: suporte experimental a leitores de tela via AccessKit. É um lançamento que conversa com dois públicos ao mesmo tempo: quem joga (porque acessibilidade também é experiência) e quem desenvolve (porque produtividade e performance impactam diretamente o que chega às mãos dos jogadores).
- Acessibilidade em foco: jogadores em primeiro lugar
- Acessibilidade para desenvolvedores: performance sem fricção
- Melhorias de performance para jogadores e desenvolvedores
- Novidades no editor que facilitam a vida
- Plataformas: Wayland, visionOS, Web, Android e Windows
- Por que isso importa agora (e para quem)
- Comunidade e ciclo de lançamentos
- Destaques rápidos do Godot 4.5 (para guardar)
Acessibilidade em foco: jogadores em primeiro lugar
Durante anos, acessibilidade em engines muitas vezes significou “vamos ver depois”. A Godot 4.5 quebra esse ciclo ao integrar o AccessKit para expor elementos de interface (Control e, via bindings, qualquer Node) a leitores de tela — um passo gigante para que pessoas com deficiência visual consigam navegar menus, compreender estados e interagir com jogos feitos na engine. É o tipo de base que, quando bem estabelecida, muda o padrão do mercado: bastam alguns projetos de referência para que o restante do ecossistema passe a exigir o mesmo nível de cuidado. Por enquanto, o suporte é experimental e o próprio editor ainda não está 100% coberto (há suporte no Project Manager, em standard UI nodes e no inspector), com promessas de seguimento nos próximos ciclos. Em outras palavras: começou; agora não há volta.

Essa virada não veio do nada. O projeto vem comunicando a chegada do recurso desde os dev snapshots, ecoando a parceria técnica com a comunidade de acessibilidade e dando pistas de que 4.5 seria o ponto de inflexão. Quem acompanha o tópico já tinha visto a integração do AccessKit em pré-lanços — e agora o suporte chega ao canal estável, abrindo espaço para guidelines e plugins que tornem a descrição de elementos (rótulos, estados, relações) parte do fluxo normal de UI.
Acessibilidade para desenvolvedores: performance sem fricção
A outra metade da história é a acessibilidade para quem desenvolve — reduzir obstáculos técnicos, acelerar iterações e dar ferramentas mais previsíveis. Três destaques se impõem:
Stencil buffer — Pense numa “máscara” invisível que diz ao renderizador onde renderizar (ou não) certos pixels. Quer criar um “portal” para espiar através de uma parede? Escreva a forma no stencil e condicione o shader da parede a não desenhar onde o stencil está ativo. O resultado é um leque de efeitos criativos: recortes dinâmicos, visores, vidraças “furadas”, contornos, revelações parciais… E tudo com controle semelhante ao depth buffer, mas com valores arbitrários e comparações configuráveis. O recurso chegou maduro o bastante para que a comunidade já comece a experimentar pipelines avançados — e a própria Godot sinaliza iterações futuras visando casos extremos (como operações increment/decrement específicas para certos truques clássicos).
Shader baker — Se você já esperou o jogo “cozinhar shaders” ao abrir (ou sofreu stutter por compilação durante o gameplay), sabe o quanto isso destrói a primeira impressão. A 4.5 introduz um shader baker que antecipa o que o editor pode pré-compilar no momento da exportação, reduzindo dramaticamente tempos de carregamento iniciais. Em plataformas como Metal (macOS) e D3D12 (Windows), a equipe reporta reduções de carregamento de até 20× no TPS demo — um salto que desenvolvedores e publicadores sentem diretamente no onboarding do jogador. Ubershaders já tinham ajudado a mitigar stutter; o baker mira aquele “congelamento” inicial.

Usabilidade e diagnóstico — Erros são inevitáveis; perder tempo caçando stack traces, não. A 4.5 traz script backtracing (inclusive em builds Release, com a flag adequada) e custom loggers para interceptar mensagens/erros — perfeito para ferramentas de bug reporting embutidas. Some a isso a visualização ao vivo de internacionalização (troque o idioma direto no viewport para validar layout, direção e truncamentos) e uma coleção de pequenos grandes detalhes (ícones HiDPI mais nítidos; color preview/picker dentro do script; “Paste as Unique”; executar EditorScripts pela command palette; exportar variables as Variant com seletor de tipo). Cada 1% de fricção que some é 1% a mais de autoria que aparece no jogo final.
Melhorias de performance para jogadores e desenvolvedores
O time de rendering não parou no baker. A 4.5 inclui:
- Specular occlusion from ambient light: adeus reflexos “fantasma” em fendas e áreas ocluídas; uma opção barata que melhora realismo sem custo proibitivo.
- Bent normal maps: usam a direção de menor oclusão para refinar reflexões indiretas e oclusão especular — melhor luz difusa, sombras mais críveis.
- SMAA 1x: o popular anti-aliasing por pós-processamento integrado oficialmente, entregando bordas mais limpas que FXAA com custo moderado.
- Mobile renderer com floats F16: quando suportado, o uso explícito de meia precisão melhora frame pacing, consumo e, em muitos casos, desempenho em GPUs móveis.
No Web, vem “FPS grátis” com WASM SIMD — nada de mudar código: navegadores modernos já suportam e a engine liga o turbo quando a cena aperta. Em XR, há backend OpenXR via D3D12 no Windows, foveated rendering no Vulkan Mobile e Application SpaceWarp nos headsets compatíveis, graças a motion vectors no mobile renderer. Na prática, mais margem de performance em HMDs autônomos e uma trilha mais clara para entregar 90/120 Hz estáveis.
Novidades no editor que facilitam a vida

A sensação geral é de lapidação do fluxo:
- Mute game toggle no Game view (debugar sem enlouquecer com o mesmo loop musical).
- Arraste e solte Resources para preload por UID (menos paths quebrados ao reorganizar pastas).
- Seleção múltipla de remote nodes em tempo de execução.
- Troca de idioma do editor on-demand (útil para plugin dev e para revisar traduções).
- Inspector com seções ativáveis via checkbox; FoldableContainer (accordion nativo); Label stacked effects (sombras/contornos empilháveis).
- Recursive overrides para foco e mouse em árvores de Control (fica trivial “congelar” um painel inteiro até que algo seja selecionado).
- AnimationPlayer com QoL (seleção de múltiplos pontos Bézier, auto-tangentes, ordenação e filtro por nome).
- Duplicate direto no Project Manager (com guard-rail quando uma atualização de engine exigiria mudanças irreversíveis).
Para projetos grandes, o Customize Engine Build Configuration ficou mais esperto: detecta classes usadas (incluindo GDExtensions) e ajusta build options, ajudando a gerar templates sob medida — menos bloat, export mais enxuto. No Core, novos métodos duplicate_deep()
para Array, Dictionary e Resource dão o controle fino que faltava na duplicação profunda de sub-recursos; e a documentação agora marca métodos virtuais required, sinalizando o que precisa realmente ser sobrescrito.
Plataformas: Wayland, visionOS, Web, Android e Windows

No Linux, a 4.5 introduz suporte nativo a sub-janelas no Wayland — um pré-requisito importante para o futuro recurso de game embedding (em desenvolvimento). Em Apple, duas frentes: o editor ganhou embedded game window no macOS; e, pela primeira vez, a Godot passa a **exportar para o visionOS de forma nativa. É um primeiro passo: por ora, exporta como app em janela (sem imersão total), com a própria Apple contribuindo na integração. No Windows, o exportador agora edita metadata de .exe internamente (adeus dependência em rcedit, ótimo para exportar de outras plataformas). E, como citado acima, no Web vem WASM SIMD; no Android, há edge-to-edge, captura de camera feed, lightmap baking e UV unwrap diretamente no dispositivo, além do suporte a páginas de 16 KB a partir do Android 15 (com requisito de .NET 9 para projetos C#).
O capítulo Input também recebeu uma decisão estratégica: o driver de gamepads passa a se apoiar no SDL3, o que deve acelerar correções e recursos (gatilhos adaptativos, háptica, motion) com menos dívida técnica no core da engine. Em Navegação, um servidor 2D dedicado elimina a dependência do pipeline 3D e reduz o peso de exportações puramente 2D; além disso, dá para processar regiões de navegação assíncronas, empurrando trabalho pesado para fora da main thread. Para Física, a interpolação 3D migrou para o SceneTree, mantendo a API mas resolvendo inconsistências de transform entre nodes e render server. Em C#/.NET, assemblies passam a ser carregados direto do APK no Android (menos chances de cache obsoleto/permissões). Em GDScript, chegam variadic arguments e classes/métodos abstratos, aproximando o design de linguagens OO clássicas e deixando APIs de arquitetura mais limpas.
Por que isso importa agora (e para quem)
Se você é dev indies/AA mirando PC e consoles, o shader baker e o SMAA melhoram a primeira impressão do seu jogo; bent normals e specular occlusion elevam o baseline visual; e o stencil buffer destrava truques de direção de arte que antes exigiam gambiarras. Em VR/XR, foveated rendering no Vulkan Mobile e Application SpaceWarp ampliam a janela de performance em standalone headsets; já o visionOS coloca a Godot no ecossistema Apple Vision Pro — ainda em “janela”, mas oficialmente dentro do ciclo de plataformas suportadas.
Se você é dev de UI/sistemas, o pacote de editor e GUI (do FoldableContainer às recursive overrides, passando por HiDPI e Label effects) te dá recursos nativos para fluxos complexos sem pular para workarounds. E, se você é dev que publica, o export de .exe sem rcedit e os templates customizados via build profiles ajudam a estabilizar pipelines CI/CD multiplataforma.
Para acessibilidade, o recado é claro: a Godot quer que leitores de tela sejam parte do padrão, não do “depois a gente vê”. Isso muda o nível de exigência de UX writing, semântica de controles, estados e feedback auditivo. E, como sempre acontece no software aberto, recurso que começa experimental rapidamente amadurece quando a comunidade adota, testa e devolve correções.
Comunidade e ciclo de lançamentos
O anúncio reforça o caráter colaborativo do projeto — “mais de 400 contribuidores” assinaram a versão — e mostra uma cadência de release mais ágil, com dev snapshots, betas, RCs e stable em janelas previsíveis. Essa previsibilidade ajuda estúdios a planejar upgrades sem surpresas: é possível acompanhar as diferenças entre 4.5-rc1/rc2 e a 4.5-stable, medir riscos com antecedência e migrar com segurança (especialmente seguindo o migration guide do post).
Destaques rápidos do Godot 4.5 (para guardar)
- Acessibilidade: leitores de tela via AccessKit (experimental), com cobertura inicial no Project Manager, standard nodes e inspector.
- Performance: shader baker com até 20× de redução nos tempos de carregamento em Metal/D3D12; WASM SIMD no Web; floats F16 no Mobile.
- Render: stencil buffer, specular occlusion, bent normals, SMAA 1x.
- Editor/GUI: HiDPI nítido, FoldableContainer, Label effects empilháveis, recursive overrides, qualidade de vida no AnimationPlayer e no fluxo de assets/import.
- Plataformas: Wayland com sub-janelas, visionOS (primeiro passo, app em janela), Windows sem rcedit, Android com edge-to-edge, câmera e baking no dispositivo.