Google demite mais de 200 contratados de IA; trabalhadores alegam que foi retaliação por queixas salariais

Escrito por
Emanuel Negromonte
Emanuel Negromonte é Jornalista, Mestre em Tecnologia da Informação e atualmente cursa a segunda graduação em Engenharia de Software. Com 14 anos de experiência escrevendo sobre...

Demissões, versões conflitantes e a precarização por trás do auge da IA!

A crise mais recente no mercado de trabalho da IA tem endereço conhecido: Google. Mais de 200 contratados que ajudavam a treinar e avaliar respostas do Gemini e do AI Overviews foram dispensados no fim de agosto. A empresa diz que se tratou de uma “desaceleração” de projeto — um ramp-down —, mas os trabalhadores contam outra história: afirmam que as demissões vieram depois de reclamações sobre salário, condições de trabalho e até tentativas de sindicalização. O caso, revelado pela Wired nesta segunda (15 de setembro de 2025), joga luz sobre a precariedade nos bastidores da corrida por modelos cada vez mais “inteligentes”.

Retaliação ou “desaceleração”? O conflito de narrativas

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Google demite mais de 200 contratados de IA; trabalhadores alegam que foi retaliação por queixas salariais 3

Segundo a reportagem, a maior parte dos dispensados atuava pela GlobalLogic (do grupo Hitachi), em um programa de “super raters” — avaliadores com mestrado ou PhD — encarregados de revisar e reescrever saídas do Gemini e checar a qualidade dos resumos do AI Overviews no Google Search. Eles relatam que foram pegos de surpresa, em duas rodadas de cortes, e que receberam como justificativa o tal “ramp-down”. Ao mesmo tempo, descrevem pressões de produtividade (janelas de cinco minutos por tarefa) e discrepâncias salariais entre equipes internas e subcontratadas.

Há um ponto que torna a história mais irônica (e, para alguns, dolorosa): documentos internos vistos pela Wired indicam que o Google estaria treinando um modelo para classificar respostas de IA, potencialmente automatizando parte do trabalho desses avaliadores humanos. Entre os cortados, ganhou força a sensação de que estavam “sendo preparados para se substituírem”. A empresa, por sua vez, afirma que a responsabilidade por contratação e condições de trabalho é da GlobalLogic e que audita fornecedores segundo seu Supplier Code of Conduct.

Os trabalhadores dizem que tentaram se organizar ao longo de 2024 e 2025, com apoio do Alphabet Workers Union, e apontam retaliação. Pelo menos duas queixas foram registradas no National Labor Relations Board (NLRB), alegando demissões injustas relacionadas a discussões sobre transparência salarial e organização coletiva. O Google sustenta que os profissionais eram empregados da GlobalLogic (ou subcontratadas) e reitera que as decisões cabem à parceira.

Em nota à imprensa local, a versão corporativa se mantém: os avaliadores terceirizados eram apenas “uma parte” do esforço mais amplo de avaliação do Gemini — argumento reforçado por veículos regionais que também cobriram o episódio. Ainda assim, o contexto de cortes após meses de queixas públicas sobre pagamento e vínculos precários alimenta a leitura dos trabalhadores de que não se tratou apenas de gestão de capacidade.

Uma tendência na indústria: o contraste entre a base e o topo da pirâmide da ia

O caso do Google não é isolado. Nos últimos dias, a xAI (startup de Elon Musk) teria dispensado cerca de 500 pessoas de sua equipe de data annotation, justificando uma guinada estratégica para priorizar treinadores “especialistas” em detrimento de funções generalistas. Além de ser um volume significativo por si só, o movimento reforça como as posições de base — rotuladores, anotadores, avaliadores — seguem como as primeiras a sofrer em ciclos de ajuste.

Outro retrato do descompasso entre o topo e a base veio com a ScaleAI, gigante de rotulagem de dados: após a Meta anunciar um investimento de aproximadamente US$ 14,3 bilhões por uma participação de 49% na empresa — acordo que incluiu a ida do então CEO para liderar um novo laboratório na rede social —, a ScaleAI cortou 14% de sua força de trabalho e encerrou contratos de cerca de 500 prestadores globais. A mensagem é clara: o capital continua fluindo para “mega-apostas” estratégicas e para a contratação de estrelas, enquanto a fundação que sustenta a qualidade dos dados vive sob a sombra de cortes.

Esse contraste ajuda a entender por que a expressão “Google AI layoffs” não é apenas um rótulo de momento, mas um sintoma. O boom da IA multiplicou pacotes milionários para pesquisadores de ponta, aquisições bilionárias e laboratórios “superinteligentes” — e, simultaneamente, cristalizou uma cadeia produtiva que depende de mão de obra qualificada (muitas vezes com pós-graduação) para tarefas repetitivas, temporárias e facilmente ajustáveis em planilhas trimestrais.

O que está em jogo (além dos números)

Se você confia em respostas de IA para pesquisar restaurante, estudar para uma prova ou tomar decisões de trabalho, a qualidade desses sistemas passa — inevitavelmente — por quem os treina e avalia. Quando contratados que dominam nuances de linguagem, verificação de fatos e prompt engineering são tratados como custos elásticos, o risco não é só humano: é também de qualidade do produto. Pressões por “cinco minutos por tarefa” e metas descoladas de complexidade tendem a empurrar modelos para o atalho do “parece bom” — o que pode repercutir em mais alucinações, vieses e respostas frágeis.

Há, ainda, uma camada regulatória e reputacional. Ao remeter responsabilidades para fornecedores como a GlobalLogic, o Google tenta blindar-se de acusações diretas; mas, na prática, o público não diferencia “quem assina o contrato” de “quem coloca a IA na sua frente”. A abertura de queixas no NLRB cria um trilho formal para investigar retaliação e pode servir de termômetro para todo o setor — inclusive para clientes corporativos que exigem due diligence de cadeia de fornecimento.

Por fim, há um paradoxo que a história expõe sem rodeios. Para que a IA “escale” com segurança, as empresas querem automatizar avaliações de qualidade e reduzir dependências de batalhões humanos. Faz sentido do ponto de vista de eficiência. Mas se a transição é feita às pressas — e às custas de pessoas que, como relatado, ajudaram a treinar os próprios sistemas que podem substituí-las — o preço pode ser uma combinação incômoda de piora de qualidade, desgaste de marca e, claro, vidas profissionais em suspenso. É um lembrete de que a corrida pela IA não é só sobre tokens e throughput; é sobre como a indústria escolhe valorizar (ou não) quem sustenta o chão dessa pirâmide.

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