JETS: a inteligência artificial treinada com 3 milhões de dias de dados do Apple Watch

IA preditiva de doenças, como o modelo JETS usa dados do Apple Watch para antecipar riscos à saúde.

Escrito por
Jardeson Márcio
Jardeson Márcio é Jornalista e Mestre em Tecnologia Agroalimentar pela Universidade Federal da Paraíba. Com 8 anos de experiência escrevendo no SempreUpdate, Jardeson é um especialista...

O uso de inteligência artificial aplicada à saúde preditiva com dados do Apple Watch acaba de alcançar um novo patamar científico. Pesquisadores do MIT, em colaboração com a Empirical Health, analisaram mais de 3 milhões de dias de dados reais coletados por dispositivos vestíveis para desenvolver um modelo capaz de antecipar condições médicas antes que sintomas evidentes apareçam. Trata-se de um dos maiores estudos já realizados com dados contínuos de wearables aplicados diretamente à medicina.

O ponto mais impressionante não é apenas a escala, mas a natureza desses dados. Diferentemente de exames clínicos pontuais, as informações do Apple Watch refletem a vida cotidiana das pessoas, com medições irregulares, lacunas naturais e enorme variabilidade individual. Até pouco tempo atrás, esse tipo de dado era visto como problemático demais para modelos avançados de IA.

O estudo mostra exatamente o contrário. Ao empregar o modelo JETS (Joint Embedding Time Series), baseado na arquitetura JEPA (Joint Embedding Predictive Architecture), os pesquisadores demonstram que dados imperfeitos podem ser a base de sistemas extremamente precisos, abrindo caminho para uma nova geração de modelos preditivos de saúde com dispositivos vestíveis.

A revolução dos modelos do mundo: do LLM ao JEPA

Durante a última década, os modelos de linguagem de grande escala, conhecidos como LLMs, redefiniram o que a IA é capaz de fazer. Eles se destacam na geração de texto e código ao prever a próxima palavra com base em padrões estatísticos. No entanto, essa lógica tem limitações quando o objetivo é compreender sistemas complexos como o corpo humano ao longo do tempo.

É nesse cenário que ganha força o conceito de modelos do mundo, defendido por Yann LeCun. Em vez de prever dados ponto a ponto, esses modelos buscam aprender representações abstratas da realidade, capturando relações, dinâmicas e significados. A JEPA nasce exatamente dessa ideia, propondo que a IA aprenda a inferir informações ausentes sem precisar reconstruí-las de forma explícita.

Para a saúde digital, essa mudança é fundamental. Dados fisiológicos coletados por wearables não seguem padrões regulares e raramente estão completos. Um modelo que exige séries perfeitas simplesmente não funciona nesse contexto, enquanto um modelo que entende o significado dos sinais consegue lidar muito melhor com a complexidade do mundo real.

O que é o Joint Embedding Predictive Architecture (JEPA)?

Apple Watch
Imagem: 9to5Google

A Joint Embedding Predictive Architecture, ou JEPA, é uma abordagem de aprendizado que trabalha com representações compartilhadas, chamadas de embeddings, tanto para dados observados quanto para partes propositalmente ocultadas. O objetivo do modelo não é recuperar valores exatos, mas alinhar semanticamente essas representações no mesmo espaço latente.

Em termos práticos, a JEPA ensina a IA a responder perguntas como: “Este conjunto parcial de sinais fisiológicos faz sentido dentro do padrão geral desse indivíduo?”. Isso permite compreender tendências, riscos e desvios relevantes sem depender de medições contínuas e perfeitas.

Essa característica torna a JEPA especialmente adequada para aplicações médicas baseadas em dados de dispositivos vestíveis, onde interrupções e inconsistências fazem parte do uso cotidiano.

JETS: o modelo fundacional para séries temporais da saúde

O JETS (Joint Embedding Time Series) é a adaptação direta dos princípios da JEPA para séries temporais multivariadas, como aquelas geradas pelo Apple Watch ao longo de meses ou anos. Ele foi projetado como um modelo fundacional, capaz de servir como base para diversas tarefas clínicas distintas.

Diferentemente de modelos tradicionais, o JETS lida naturalmente com dados coletados em intervalos irregulares e com múltiplas variáveis fisiológicas ao mesmo tempo. Isso inclui padrões de sono, atividade física, frequência cardíaca e outros sinais que variam ao longo do dia e entre indivíduos.

Essa abordagem representa um avanço importante para a inteligência artificial aplicada à saúde preditiva com wearables, pois elimina a necessidade de simplificações artificiais que antes comprometiam a qualidade das análises.

Dados vestíveis: o desafio dos 3 milhões de dias do Apple Watch

O conjunto de dados utilizado no estudo reúne informações de 16.522 pessoas, totalizando mais de 3 milhões de dias de uso do Apple Watch. Foram analisadas 63 métricas fisiológicas, organizadas em cinco grandes domínios, cobrindo desde atividade física até padrões cardiovasculares e de sono.

O desafio central estava na heterogeneidade. Nem todos os usuários usam o relógio todos os dias, algumas métricas falham temporariamente e o contexto de uso varia enormemente. Em estudos convencionais, isso exigiria extensos processos de limpeza ou até a exclusão de grandes volumes de dados.

O JETS adota uma estratégia oposta. Ele aprende diretamente com essas imperfeições, interpretando lacunas como parte do comportamento humano real. Isso torna o modelo muito mais alinhado com a realidade de quem usa o Apple Watch no dia a dia, reforçando seu potencial para detecção precoce de doenças a partir de dados vestíveis.

O poder do aprendizado autossupervisionado na saúde digital

Um dos pontos mais relevantes do estudo é o uso intensivo de aprendizado autossupervisionado. Cerca de 85% dos dados disponíveis não possuíam rótulos clínicos, ou seja, não estavam associados a diagnósticos médicos formais.
Em vez de descartar esse volume massivo de informação, o JETS foi pré-treinado para aprender padrões fisiológicos gerais sem supervisão explícita. Durante esse processo, o modelo desenvolve uma compreensão profunda do que é considerado normal e de como pequenas variações podem indicar mudanças relevantes.

Posteriormente, uma quantidade muito menor de dados rotulados é suficiente para ajustar o modelo a tarefas específicas, como prever hipertensão ou fibrilação atrial. Esse método torna o uso da IA muito mais eficiente, especialmente em saúde, onde dados rotulados são caros e demorados de obter.

Resultados e o futuro da saúde preditiva com dados do Apple Watch

Os resultados obtidos pelos pesquisadores são expressivos. O JETS apresentou valores elevados de AUROC em diferentes tarefas clínicas, incluindo a previsão de hipertensão, fibrilação atrial e síndrome da fadiga crônica. Esses números indicam uma forte capacidade de identificar indivíduos com maior risco muito antes de diagnósticos tradicionais.

Métricas como AUROC e AUPRC são particularmente importantes em saúde porque avaliam a capacidade do modelo de classificar e priorizar corretamente os casos, e não apenas de acertar previsões isoladas. Em ambientes clínicos, essa distinção é crucial, pois permite direcionar atenção e recursos para quem realmente precisa.

Na prática, isso aponta para um futuro em que o monitoramento contínuo feito por dispositivos como o Apple Watch pode complementar exames médicos, ajudando profissionais de saúde a tomar decisões mais informadas e proativas.

Conclusão e o impacto do JETS na medicina

O desenvolvimento do JETS, treinado com milhões de dias de dados do Apple Watch, demonstra como a união entre arquiteturas modernas de IA, aprendizado autossupervisionado e dados do mundo real pode transformar a saúde digital. Em vez de depender apenas de consultas pontuais, a medicina passa a contar com uma visão longitudinal e contextualizada do paciente.

Esse avanço reforça o papel dos dispositivos vestíveis como ferramentas centrais na saúde preditiva, indo muito além do monitoramento básico de passos ou batimentos cardíacos. À medida que modelos como o JETS evoluem, a fronteira entre tecnologia de consumo e cuidado médico tende a se tornar cada vez mais integrada.

O uso responsável de inteligência artificial aplicada à saúde com dados do Apple Watch levanta debates importantes sobre privacidade e ética, mas também oferece uma oportunidade sem precedentes de detectar doenças mais cedo e melhorar a qualidade de vida. A pergunta que fica é até que ponto estamos prontos para incorporar esse tipo de tecnologia de forma ampla e consciente na medicina do dia a dia.

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