Hoje, milhões de pessoas ao redor do mundo descobriram que a internet pode “tropeçar” de uma hora para outra. O Cloudflare outage de 18 de novembro derrubou ou deixou instáveis serviços como ChatGPT, X, Spotify, sites de governo e ferramentas de trabalho que pareciam intocáveis até ontem.
A pergunta que fica é desconfortável: se um bug em uma única empresa consegue, na prática, desligar pedaços inteiros da nossa vida digital, quem é que manda de verdade na internet?
Quando um arquivo de configuração derruba o seu dia
Pelo que já foi divulgado, a Cloudflare atribuiu o incidente a um problema interno, não a um ataque hacker. Um arquivo de configuração usado para gerenciar “tráfego de ameaça” cresceu além do previsto, bateu em limites de software e provocou falhas em serviços críticos na borda da rede. Em paralelo, houve um pico atípico de tráfego, o que só piorou o colapso.
Traduzindo: uma peça do motor, desenhada para proteger e otimizar o trânsito de dados, travou e fez o carro morrer no meio da estrada. Os servidores de origem de muitos sites continuaram funcionando, mas as camadas intermediárias que fazem o mundo moderno parecer “rápido e seguro” pararam de responder. Resultado: erros de DNS, páginas que não carregam, logins que não completam, pagamentos que não finalizam.
Não houve ataque coordenado, não houve megacampanha de ransomware. Foi “só” um bug e um efeito cascata. E justamente por isso o episódio é tão revelador.
O mapa de poder da infraestrutura: poucos donos, muita dependência

Na superfície, a internet parece caótica e distribuída. Milhões de sites, milhares de aplicações, cada empresa com seu time de TI. Mas, por baixo, o quadro é bem mais concentrado do que parece.
Pesquisas recentes sobre consolidação de DNS e hospedagem mostram que um punhado de organizações domina o coração da web. Em um estudo com os domínios mais populares do mundo, dois nomes, Cloudflare e Amazon, são responsáveis sozinhos por hospedar os servidores de nome (DNS) de mais de 40% desses sites. Cinco provedores, entre eles Cloudflare, Amazon, Akamai, Fastly e Google, hospedam cerca de 60% das páginas iniciais e da maior parte dos recursos externos carregados por esses sites.
Outro trabalho sobre consolidação de DNS e web hosting chega à mesma conclusão: a internet até cresce em tamanho, mas depende cada vez mais de um pequeno grupo de provedores para traduzir nomes de domínio e entregar conteúdo. Um único problema em uma dessas empresas já é suficiente para afetar uma fatia enorme da web ao mesmo tempo.
Coloque nessa equação os hyperscalers de nuvem, como AWS e Azure, que concentram bancos de dados, filas, armazenamento, funções serverless e ferramentas de IA, e a resposta para “quem manda na internet” começa a ficar mais clara. Não é o seu provedor local, nem o datacenter da sua cidade. São alguns poucos hubs globais de infraestrutura.
Controle invisível: do DNS ao botão de login
O poder desses provedores é, em grande parte, invisível para o usuário comum. Você digita um endereço, clica em um botão de login, abre o app de música e não pensa em mais nada. Mas, entre o seu clique e o servidor de origem, existe uma verdadeira “cidade” de serviços intermediários:
- DNS, que traduz nomes como
meusite.comem endereços IP; - CDN (Content Delivery Network), que guarda cópias do conteúdo perto de você;
- WAF, mitigação de DDoS e toda a camada de segurança na borda;
- proxies, caches, balanceadores e otimizações variadas.
Em muitos casos, uma única empresa fornece tudo isso como um pacote. É conveniente, barato e eficiente. Até o dia em que uma falha em um componente chuta o banquinho debaixo de toda essa pilha.
O Cloudflare outage de hoje mostrou exatamente isso: o usuário só vê “ChatGPT indisponível” ou “X não carrega”, mas a raiz está em uma camada que ninguém escolheu conscientemente, que foi herdada como padrão de mercado. Quer você tenha decidido ou não, o seu login, seu feed e seu pagamento dependem do bom funcionamento de umas poucas infraestruturas globais.
Soberania digital e a pergunta incômoda: quem decide quando volta?
Existe um outro lado dessa concentração que passa facilmente batido na cobertura mais “tech news”: a questão da soberania.
Quando um serviço como a Cloudflare cai, governos, empresas e usuários só podem esperar. Não há como um regulador “mandar consertar”. Não há como um banco central “forçar a alta disponibilidade”. Um relatório recente sobre consolidação na economia da internet, da Internet Society, já apontava esse problema: plataformas de infraestrutura privadas ganham peso transnacional, mas não são diretamente controláveis por políticas nacionais tradicionais.
Na prática, isso significa que:
- uma prefeitura pode perder seu site de emergência em plena crise climática;
- uma universidade pode ficar sem ambiente virtual de aprendizagem no meio de uma prova;
- uma fintech pode ver o fluxo de pagamentos travar no pico de uso.
Em todos esses cenários, o script se repete: ligar para o suporte, monitorar o status page, torcer para que o time de engenharia de um terceiro resolva o incidente rapidamente. O poder real de decisão está concentrado do lado de quem opera essa infraestrutura intermediária.
E o que isso significa para você, na prática?
“Quem manda na internet?” não é só uma pergunta filosófica para acadêmico discutir em conferência. Ela tem consequências bem concretas para três tipos de atores.
- Usuários finais
Quanto mais concentrada a infraestrutura, mais frequentes e amplos tendem a ser os efeitos colaterais de falhas pontuais. A experiência de hoje, com vários serviços caindo ao mesmo tempo, tende a se repetir se nada mudar na forma como construímos a web. - Empresas de todos os tamanhos
Não basta escolher “um grande provedor” e achar que o problema de disponibilidade está resolvido. A pergunta certa não é “em qual nuvem eu estou?”, mas “em quantos pontos de falha únicos eu estou apostando?”. Ter tudo em um único provedor de DNS, uma única CDN, uma única nuvem é pedir para sofrer em cada grande incidente. - Governo e reguladores
Outages como esse ligam um alerta sobre continuidade de serviços críticos. Não adianta exigir SLA de 99,9% de um órgão público se a cadeia inteira depende de fornecedores privados que não têm planos robustos de redundância e diversidade. A discussão sobre “infraestrutura essencial” precisa incluir DNS, CDN e nuvem, não apenas telecom.
No fundo, o Cloudflare outage de hoje não aponta para um vilão, mas para um modelo de internet que está mais centralizado do que gostaríamos de admitir. Enquanto continuarmos construindo a web como um castelo apoiado em poucos pilares globais, a pergunta “quem manda na internet?” terá uma resposta simples e pouco reconfortante: não somos nós.
