Você provavelmente já ouviu Blockchain no mesmo pacote de palavras que Bitcoin, especulação e sobe-e-desce de preços. Só que existe uma camada bem menos barulhenta, e bem mais relevante para o cotidiano do país: blockchain como infraestrutura de segurança digital. É o tipo de tecnologia que não aparece na tela do cidadão, mas aparece no efeito: integridade do registro, trilha de auditoria, redução de fraude e menos espaço para “ajustes” silenciosos.
Na leitura de Fabiano Nagamatsu, CEO da Osten Moove, o Brasil vive uma liderança silenciosa ao aplicar blockchain em serviços críticos. A tese é direta: enquanto parte do mundo ainda discute blockchain como ativo financeiro, por aqui já existiriam iniciativas no setor público usando redes blockchain para reforçar confiança em cadastros e fluxos de dados, incluindo projetos ligados ao CPF, à Receita e a sistemas de saúde. O cidadão não “percebe” a tecnologia, mas depende dela quando o assunto é prova, rastreabilidade e confiabilidade.
Brasil: protagonista na blockchain pública

Soberania digital costuma soar abstrata até você lembrar do que está em jogo: identidade civil, arrecadação, comércio exterior, saúde pública e cadeias de suprimentos. Quando o Estado depende apenas de bases centralizadas, qualquer falha vira um ponto único de colapso, seja por ataque, corrupção interna, erro humano ou indisponibilidade.
No Brasil, há projetos documentados envolvendo blockchain para compartilhamento e validação de dados cadastrais (como iniciativas referidas como bCPF e bCNPJ), além de usos no contexto aduaneiro do Mercosul e relatos de blockchain conectada a sistemas de registro de saúde e vacinação. Em outras palavras, não se trata necessariamente de “colocar tudo em blockchain”, e sim de usar a tecnologia como camada de confiança onde o risco de adulteração, duplicidade e fraude é alto.
Imutabilidade como escudo (e ferramenta anticorrupção)
Um dos superpoderes mais citados da Blockchain é a imutabilidade: depois que um registro entra, ele não pode ser alterado sem deixar rastros e sem consenso das regras daquela rede. Em termos práticos, isso muda o jogo em auditoria, compliance e rastreabilidade, que são exatamente os terrenos onde fraude e corrupção costumam prosperar.
Pense em processos públicos que exigem confiança no histórico: quem fez o quê, quando, com qual autorização, e qual era a versão “verdadeira” de um documento em determinado momento. Em um banco de dados tradicional, basta um acesso privilegiado para manipular registros e apagar pegadas. Em uma arquitetura blockchain bem desenhada, a trilha deixa de ser um relatório opcional e vira parte do próprio mecanismo.
Isso não significa que blockchain “elimine corrupção”. Ela não troca ética por matemática. O que ela faz é reduzir o espaço para narrativas falsas, porque o custo de forjar o passado fica maior e, principalmente, mais detectável.
O livro-razão indestrutível: descentralização vs. servidor central
A analogia é simples: imagine um livro de registros em que, uma vez escrito, nada pode ser apagado ou reescrito. Agora multiplique isso por milhares de cópias guardadas em cofres independentes. Se um cofre for invadido, queimado ou corrompido, as outras cópias continuam preservando a verdade.
É assim que a Blockchain contrasta com o modelo tradicional de “um servidor manda em tudo”. No mundo centralizado, um ataque bem-sucedido pode expor a base inteira, alterar dados críticos e ainda ocultar evidências. No modelo descentralizado, a confiança não depende de uma única máquina ou de um único administrador, e sim de verificações distribuídas e regras de consenso.
Na linguagem do mercado, isso vira “confiança matemática”. Na linguagem do cidadão, vira algo mais direto: menos chance de alguém mexer no seu registro sem você saber.
Integridade não é sigilo: o erro comum que bagunça a conversa
Aqui entra um detalhe que melhora muito a honestidade do debate: blockchain é excelente para integridade (provar que não foi adulterado), mas não é, por si só, sinônimo de sigilo (garantir que ninguém leia). Vazamento de dados normalmente acontece por credenciais roubadas, permissões mal configuradas, falhas em sistemas periféricos, engenharia social e acesso indevido, coisas que podem existir mesmo em projetos que usem blockchain.
Por isso, quando se fala em segurança digital no mundo real, a combinação costuma ser o que faz diferença: blockchain para prova e trilha, criptografia para confidencialidade, controle de acesso para limitar quem pode ver, além de monitoramento e governança para reduzir risco operacional.
Hash on-chain, dados off-chain: como proteger sem expor
Outro ponto que vale colocar de forma didática: em muitos projetos sérios, não se grava “o dado sensível” diretamente na blockchain. O padrão mais comum é registrar um hash (uma impressão digital criptográfica) e um carimbo de tempo na cadeia (on-chain), enquanto o conteúdo sensível fica fora (off-chain), em repositórios com governança, criptografia e auditoria.
O resultado é elegante: você prova que um documento, evento ou registro existia em uma data e não foi alterado, sem precisar publicar o conteúdo. É como carimbar a autenticidade sem colocar a vida do cidadão em vitrine.
Governança e chaves privadas: onde projetos bons podem falhar
Se existe um calcanhar de Aquiles recorrente em sistemas baseados em blockchain, ele raramente é “a blockchain foi hackeada”. O problema costuma estar na borda: gestão de chaves privadas, controles de acesso, permissões internas, processos e integrações com sistemas legados.
Se alguém perde uma chave, compartilha uma credencial, ou se o fluxo de autorização é frouxo, a confiança desmorona, mesmo que o livro-razão seja impecável. Por isso, a maturidade do tema exige que segurança seja tratada como sistema, não como slogan: políticas de chaves, segregação de funções, revisão de acessos, logging, resposta a incidentes e auditorias independentes.
Quando blockchain faz sentido (e quando é só moda)
Para fugir do “blockchain para tudo”, dá para usar uma regra prática: blockchain brilha quando existe um ecossistema com múltiplos atores que não confiam 100% entre si, mas precisam compartilhar uma verdade comum. Governo, bancos, registradoras, comércio exterior, hospitais, cadeias logísticas e certificação são exemplos onde a trilha auditável tem valor concreto.
Se for um processo interno de uma única organização, com um único dono do dado e nenhum conflito de confiança, bancos de dados tradicionais continuam sendo mais simples, mais baratos e muitas vezes mais eficientes. A pergunta que separa infraestrutura de hype é: “precisamos de um registro inviolável aceito por várias partes, com auditoria forte?” Se a resposta for sim, blockchain entra na conversa.
Tokenização e a Duplicata Escritural: a economia do registro confiável
Se a primeira onda é segurança, a segunda é eficiência econômica. A discussão puxada por Nagamatsu ganha força quando entra no tema da Duplicata Escritural e da tokenização de ativos reais. Aqui, tokenizar não é “inventar moeda”. É representar um ativo do mundo real em um registro digital verificável, com regras e trilhas de auditoria.
A promessa é grande porque o problema é grande: o mercado de recebíveis e duplicatas movimenta valores enormes, mas carrega fricção, burocracia, riscos de fraude documental e assimetria de informação. Uma infraestrutura escritural, padronizada e rastreável muda o custo de “provar”, reduz risco de dupla negociação e tende a abrir espaço para crédito com melhor governança.
Quando o registro vira confiável, o capital circula com menos litígio e menos custo de verificação. Em termos simples: o mercado gasta menos energia conferindo papel, e mais energia fazendo o crédito chegar.
Aplicações reais: remédios, cadeia logística e produtos de luxo
Um dos exemplos mais fáceis de visualizar é rastreabilidade. Medicamento falsificado mata. Uma cadeia que registra origem, lote, transporte e entrega em uma estrutura blockchain dificulta a entrada de produto adulterado sem deixar inconsistências. Para hospitais, farmácias e pacientes, autenticidade deixa de ser promessa e vira verificável.
O mesmo raciocínio vale para itens de alto valor: joias, arte, relógios e produtos de luxo. A falsificação não é só um problema de status, é um problema econômico. Associar um item a um registro digital verificável reduz fraudes, melhora seguro, facilita revenda e fortalece a confiança do mercado.
Smart Contracts com freios e contrapesos
É tentador tratar Smart Contracts como “automação perfeita”, mas segurança de verdade pede freios e contrapesos. Contratos inteligentes precisam de auditoria, testes, revisão de lógica e planos de contingência. Um bug em regras automatizadas pode escalar rápido, porque a automação não erra por maldade, ela erra com eficiência.
Esse ponto, longe de enfraquecer o argumento, o fortalece: quando blockchain é tratada com engenharia séria, ela deixa de ser promessa e vira infraestrutura.
Proveniência como antídoto parcial contra deepfakes e falsificações digitais
Num mundo de deepfakes, golpes de identidade e documentos falsos gerados por IA, cresce o valor da proveniência. Blockchain pode ajudar a responder a uma pergunta simples, mas cada vez mais rara: “isso é original?” Ao registrar emissão, carimbos de tempo e trilhas de custódia, fica mais fácil provar origem, reduzir adulteração e criar um “selo de procedência” verificável.
Ela não impede alguém de criar uma falsificação. Mas pode reduzir o espaço para que a falsificação seja aceita como verdadeira em processos formais, principalmente quando a verificação é automatizada e integrada ao fluxo.
O que não dá para romantizar
Um alerta final melhora a credibilidade da visão otimista: blockchain não resolve tudo e pode ser mal implementada. Governança fraca, chaves mal geridas, integrações descuidadas e “pontes” com o mundo real vulneráveis derrubam a promessa.
Também existe uma diferença grande entre redes públicas e redes permissionadas. No setor público, o mais comum é ver redes com controle de participação, justamente para equilibrar desempenho, privacidade e conformidade com a LGPD. No fim, a melhor adoção é a pragmática: usar blockchain onde ela reduz risco e aumenta confiança, com métricas e auditoria, sem transformar a tecnologia em religião.
