A Valve, conhecida mundialmente pela plataforma Steam e por seu papel central na popularização do gaming no Linux, lançou um sinal de alerta diante da proposta do Fedora 44 de remover o suporte completo à arquitetura i686 (32 bits). Embora a decisão tenha motivação técnica compreensível, ela pode representar uma ameaça significativa à compatibilidade de milhares de jogos via Proton, Steam Runtime e Wine.
Com o ecossistema Linux ainda dependendo de bibliotecas essenciais de 32 bits como glibc e mesa drivers para rodar jogos antigos (e muitos modernos), a posição da Valve é clara: retirar o suporte a i686 agora é prematuro e coloca em risco a experiência dos jogadores Linux.
O papel da Valve no ecossistema de jogos Linux
Desde 2013, a Valve tem sido uma das maiores promotoras da adoção de Linux para jogos, com iniciativas como:
- Steam para Linux, que abriu as portas para centenas de jogos nativos;
- O lançamento do SteamOS, uma distribuição Linux voltada para jogos;
- O desenvolvimento do Proton, uma camada de compatibilidade baseada em Wine e DXVK, permitindo rodar jogos Windows no Linux;
- O sucesso comercial do Steam Deck, que roda Linux (SteamOS 3) como sistema base.
Essas iniciativas foram possíveis, em parte, graças ao suporte da arquitetura multilib — ou seja, a capacidade dos sistemas x86_64 de executarem binários de 32 bits.
O alerta: por que o fim do i686 é uma ameaça real
A proposta do Fedora 44 elimina não só o suporte a sistemas 32 bits autônomos, mas também a presença de bibliotecas i686 nos repositórios padrão. Para a Valve, isso cria barreiras técnicas graves, já que diversos jogos e ferramentas do ecossistema Steam ainda:
- Dependem de glibc.i686, a biblioteca C padrão de 32 bits;
- Requerem mesa drivers i686 para renderização gráfica OpenGL/Vulkan;
- Necessitam de suporte multilib para carregar runtimes específicos no modo compatibilidade.
Steam Runtime: uma engrenagem de 32 bits
A Steam Runtime, conjunto de bibliotecas usado pela Steam para garantir compatibilidade, é construída com suporte multilib em mente. Ela oferece uma base previsível de bibliotecas i686 para que jogos antigos ou compilados para Windows rodem corretamente no Linux via Proton ou Wine.
Ao remover essas bibliotecas do repositório, o Fedora:
- Quebra a expectativa de compatibilidade para usuários da Steam;
- Dificulta a instalação de jogos que dependem de bibliotecas herdadas;
- Impede que novos usuários tenham uma experiência funcional out of the box.
Proton e Wine: dependência crítica de 32 bits
Embora muitos jogos estejam migrando para 64 bits, uma parcela significativa ainda é baseada em executáveis de 32 bits. Isso inclui desde títulos independentes até franquias clássicas. E mesmo nos jogos 64 bits, instaladores, launchers e anticheats muitas vezes ainda utilizam componentes em 32 bits.
O Proton, principal ferramenta da Valve para executar jogos Windows no Linux, é um stack complexo que exige bibliotecas 32 bits, incluindo:
- libX11.i686, libGL.i686, libpulse.i686 e outras para suporte audiovisual;
- glibc.i686 como base de execução para binários herdados;
- Integração com os mesa drivers para garantir aceleração gráfica via Vulkan/OpenGL.
Sem esses pacotes no repositório padrão, o funcionamento do Proton é prejudicado — e o resultado é direto: jogos que antes rodavam deixam de funcionar.
Um apelo à comunidade Fedora: evitar a fragmentação
A Valve não é contra a modernização do ecossistema Linux. Pelo contrário: a empresa tem apoiado avanços como o uso do Wayland, o desenvolvimento de drivers open source, o uso de PipeWire, entre outros.
Contudo, o fim abrupto do suporte multilib sem uma alternativa clara e integrada causa fragmentação e frustração. Muitos usuários não têm o conhecimento técnico necessário para configurar containers, Flatpaks customizados ou chroots.
Sugestões técnicas da Valve
A Valve já indicou alguns caminhos para um meio-termo viável:
- Manter um subconjunto de bibliotecas i686 essenciais, apenas para uso com Wine/Proton/Steam;
- Oferecer um repositório multilib opcional, como o Ubuntu faz com o i386;
- Garantir que o Steam Runtime continue funcionando com suporte multiarquitetura;
- Colaborar com a comunidade para desenvolver Flatpaks oficiais com suporte completo a jogos legados.
Essas abordagens permitiriam à comunidade Fedora avançar em direção à modernização sem sacrificar compatibilidade com jogos.
O Steam Deck e o Fedora: caminhos que se cruzam
Com a base do SteamOS 3 sendo baseada no Arch Linux, muitos usuários do Steam Deck utilizam distribuições como Fedora como alternativa. A remoção do suporte i686 pode tornar o Fedora inviável como sistema base para jogos — tanto no Steam Deck quanto em desktops.
Essa perda de compatibilidade pode causar uma migração em massa para distros com suporte mais amigável a jogos, como o próprio Arch, o Nobara Project (baseado em Fedora, mas com ajustes), ou mesmo o Ubuntu LTS.
Conclusão: remover o i686 pode ser um tiro no pé para o Linux gaming
O Fedora 44 pode estar prestes a dar um passo importante rumo à modernização. No entanto, ao fazer isso sem preservar o ecossistema de jogos legados via multilib, pode alienar uma das comunidades mais engajadas e em crescimento do mundo Linux: os gamers.
A Valve deixa claro que a manutenção do suporte a bibliotecas 32 bits não é uma nostalgia técnica, mas uma necessidade concreta para a compatibilidade de milhares de títulos no Steam.
O futuro do Linux para jogos depende de cooperação, pragmatismo e planejamento. O Fedora pode liderar esse futuro — desde que escute as vozes que ajudam a construí-lo.