O Linux domina os supercomputadores do mundo. No ranking TOP500, que lista os sistemas de maior desempenho computacional do planeta, mais de 95% utilizam alguma variante do Linux. Mas poucos sabem que, em um momento decisivo da história, houve uma proposta concreta que poderia ter mudado esse destino: transformar o Linux em um sistema pago para supercomputadores.
Neste artigo, vamos explorar em profundidade o dia em que o Linux quase perdeu sua liberdade no setor de HPC (High Performance Computing), analisando os bastidores da tentativa de uma licença Linux HPC, os motivos de sua falha e o impacto crucial dessa decisão na história do Linux na supercomputação.
O cenário da supercomputação: um domínio proprietário antes do Linux
Supercomputadores: uma frota de carros de corrida computacional
Antes de entendermos a controvérsia, é preciso compreender o que é um supercomputador. Imagine uma frota de carros de Fórmula 1 trabalhando em sincronia para resolver problemas complexos — simulações meteorológicas, pesquisas nucleares, inteligência artificial. Essa frota, no mundo real, é composta por milhares de CPUs e GPUs conectadas, processando trilhões de cálculos por segundo.
Esses sistemas pertencem ao campo do HPC (High Performance Computing), uma área sensível a desempenho, custo e escalabilidade.
O domínio dos UNIX proprietários
Durante décadas, supercomputadores rodavam sistemas UNIX comerciais altamente especializados: AIX (IBM), IRIX (SGI), HP-UX, entre outros. Esses sistemas vinham com licenças caras, manutenção exclusiva e forte dependência do fornecedor. O resultado? Um ciclo de aprisionamento tecnológico.
O surgimento do Linux em HPC
Com o avanço do hardware x86_64 e a flexibilidade do Linux, pesquisadores começaram a criar clusters de alto desempenho com software livre. A linguagem secreta dos supercomputadores começava a mudar (leia mais aqui).
Um dos pontos de virada foi o nascimento dos clusters Beowulf, projeto iniciado por Donald Becker e Thomas Sterling, que demonstrou que era possível construir supercomputadores com hardware comum e Linux.
“Beowulf foi o cavalo de Troia do Linux na supercomputação. De repente, a porta estava aberta.”
— Donald Becker, IEEE, 1999
O Linux oferecia:
- Custo zero de licenciamento
- Código auditável e modificável
- Escalabilidade sob controle do usuário
- Comunidade ativa e colaborativa
Isso pavimentou o caminho para a revolução do Linux no TOP500.
A proposta polêmica: quando o Linux quase virou um sistema “pago” para HPC

Um modelo de cobrança para o Linux em supercomputadores
No início dos anos 2000, com o crescimento explosivo da adoção do Linux em ambientes HPC, surgiram propostas de monetização. Uma das mais controversas foi a ideia de criar uma licença Linux HPC, uma forma de cobrar pelo uso do Linux em supercomputadores, sem alterar seu uso tradicional em desktops e servidores comuns.
As propostas giravam em torno de:
- Certificação compulsória para clusters Linux acima de X nós
- Licenciamento dual: uso gratuito para fins gerais e pago para HPC
- Cobrança proporcional à capacidade de processamento (ex: por nó, CPU ou TFlops)
As motivações por trás da proposta
- Sustentabilidade financeira: os proponentes alegavam que grandes empresas lucravam com o Linux em HPC, mas pouco retornavam à comunidade.
- Qualidade garantida: cobrar permitiria estabelecer SLAs (acordos de nível de serviço) e certificações oficiais.
- Concorrência com UNIX comerciais: a proposta buscava gerar receita nos mesmos moldes dos sistemas proprietários.
- Valorização do trabalho técnico: era visto como um “reconhecimento comercial” ao esforço dos desenvolvedores de kernel.
Tentativas paralelas: o caso da Silicon Graphics (SGI)
A SGI (Silicon Graphics Inc.), conhecida no mundo de HPC, tentou lançar uma versão do Linux para supercomputadores com trechos não auditáveis de código e restrições técnicas no uso em clusters massivos.
“Chamem do que quiserem, mas não é Linux se não podemos ver o código.”
— Linus Torvalds, LKML, 2001
Esse episódio acendeu o alerta sobre os riscos de desfigurar o modelo de código aberto com medidas “semi-proprietárias”.
Os bastidores da licença que não vingou: a reação da comunidade e de Linus Torvalds
A explosão na LKML e nos fóruns da comunidade
A proposta causou indignação na Linux Kernel Mailing List (LKML) e na comunidade internacional. Um dos primeiros a se opor foi Alan Cox, então o segundo maior mantenedor do Kernel:
“Cobrar pelo Kernel em função do poder computacional não é apenas antiético. É tecnicamente indefensável.”
— Alan Cox, LKML (2002)
Fonte: LKML.org
Linus Torvalds também rejeitou a ideia com firmeza:
“Não se pode cobrar por liberdade. O que vocês estão propondo é um fork comercial travestido de sustentabilidade. Isso não é o Linux.”
— Linus Torvalds, LKML, 2001
Fonte: LWN.net
Declarações da FSF e seus representantes
Eben Moglen, conselheiro jurídico da Free Software Foundation, explicou por que a GPL v2 tornava essa proposta inviável:
“A GPL não pode ser subvertida com métricas arbitrárias como número de CPUs. Isso fere a lógica do copyleft.”
— Eben Moglen, LinuxWorld 2002
Fonte: Internet Archive
Richard Stallman também criticou publicamente:
“Cobrar pelo uso do software livre com base em onde ele roda ou como é usado é um ataque disfarçado à liberdade do usuário.”
— Richard Stallman, OSNews, 2002
Por que a ideia falhou? Análise dos fatores que garantiram a liberdade do Linux em HPC
1. A proteção jurídica da GPL
A General Public License impede explicitamente a adição de restrições comerciais arbitrárias:
GPLv2, cláusula 6: “You may not impose any further restrictions on the recipients' exercise of the rights granted herein.”
2. A força da comunidade vigilante
A comunidade de desenvolvedores e usuários open source reagiu com força. O debate público desmantelou qualquer legitimidade da ideia antes que ela ganhasse tração.
3. O modelo de negócio baseado em serviços
Red Hat, SUSE e outras mostraram que é possível lucrar com suporte, consultoria e integração, sem travar o acesso ao código.
4. A crítica técnica de Greg Kroah-Hartman
“Qual o limiar? Dois nós? Mil? Um Beowulf caseiro? Não existe métrica neutra para isso.”
— Greg Kroah-Hartman, Open Source Summit 2004
Fonte: LWN.net
5. O alerta do modelo Sun Grid Engine
A Sun Microsystems, com o Sun Grid Engine, tentou criar um ecossistema HPC open source, mas com forte controle sobre roadmap e branding. Esse modelo serviu de exemplo do que poderia ter acontecido com o Linux caso aceitasse licenças restritivas.
“O SGE era livre no nome, mas preso nas práticas. O Linux se salvou de repetir esse erro.”
— Jonathan Corbet, LWN, 2005
O impacto na história Linux supercomputação: o pinguim no topo do TOP500
A consolidação do Linux em HPC
A recusa em criar um Linux sistema pago para supercomputadores permitiu que o sistema crescesse de forma orgânica, baseado em mérito técnico e liberdade.
O domínio atual do TOP500
Hoje, quase 100% dos supercomputadores do mundo rodam Linux.
Ano | Participação do Linux no TOP500 |
---|---|
2000 | 13% |
2005 | 73% |
2010 | 91% |
2020 | 100% |
2024 | 99.6% |
O marco do Roadrunner
O supercomputador Roadrunner, o primeiro a atingir 1 petaflop (2008), rodava uma arquitetura híbrida baseada em Linux. Esse feito selou a confiança das agências governamentais na robustez do sistema livre.
“O Linux mostrou que podia escalar não só para o topo, mas também para a fronteira do desconhecido.”
— Thomas Zacharia, LANL
OpenHPC e Linux Foundation: a institucionalização da liberdade
A Linux Foundation e o OpenHPC consolidaram o modelo livre, oferecendo ferramentas e padronizações sem custo.
“A missão da Linux Foundation é garantir que o Linux nunca precise de uma licença para ser usado onde ele é mais necessário.”
— Jim Zemlin, 2016
“O futuro do HPC é aberto, modular e construído em cima da liberdade que o Linux proporciona.”
— Karl Schulz, SC16 Conference
Glossário analítico
- GPL: Licença que garante liberdade de uso, modificação e redistribuição do software, impedindo qualquer imposição de restrições adicionais.
- HPC: Computação de alto desempenho usada em supercomputadores. Equivale a uma frota de carros de corrida científica.
- Beowulf: Modelo de cluster de PCs usando Linux para supercomputação, criado nos anos 90.
- Dual licensing: Modelo em que um software é licenciado sob dois regimes — um livre, outro pago.
- OpenHPC: Projeto comunitário que fornece pacotes e ferramentas para HPC com base no Linux.
Conclusão
O dia em que o Linux quase virou um sistema “pago” para supercomputadores é um marco histórico. A tentativa de estabelecer uma licença Linux HPC foi derrubada por uma combinação de resistência comunitária, força legal da GPL, posicionamento ético de desenvolvedores e visão estratégica de empresas conscientes. Aproveite e leia um outro artigo nosso, e conheça as melhores distribuições Linux de todos os tempos.
Graças a isso, o Linux permanece livre e soberano nos domínios mais exigentes da computação de alto desempenho. A história do Linux na supercomputação é uma demonstração do poder da liberdade de software — e uma lição sobre como resistir a tentações comerciais que podem corroer conquistas coletivas.