Os bastidores nunca contados das primeiras distribuições Linux: os conflitos, os idealistas e o nascimento de um império de código aberto

Escrito por
Emanuel Negromonte
Emanuel Negromonte é Jornalista, Mestre em Tecnologia da Informação e atualmente cursa a segunda graduação em Engenharia de Software. Com 14 anos de experiência escrevendo sobre...

A origem das distros que fundaram o império Linux — e os conflitos nunca contados que definiram o futuro do open source.

O Linux não nasceu pronto. Quando Linus Torvalds compartilhou seu kernel em 1991, o que ele ofereceu ao mundo era apenas o núcleo de um sistema operacional — um coração que pulsava, mas sem corpo. Transformar aquilo em um sistema funcional era tarefa de titãs. Foi assim que surgiram as primeiras distribuições Linux, não como produtos comerciais, mas como projetos de idealistas, estudantes e engenheiros que ousaram sonhar com um novo paradigma digital.

Por trás de Slackware, Debian e Red Hat, havia choques de filosofia, debates acalorados em listas de discussão, decisões polêmicas, sabotagens técnicas, reações furiosas da comunidade e até rumores de manipulação de padrões. Neste artigo, revelamos os bastidores mais profundos do nascimento do ecossistema Linux histórico — os conflitos, os personagens e as ideias que fundaram um império de código aberto.

O vácuo entre o kernel e o sistema: por que o Linux precisava de distribuições?

Para iniciantes: o que é uma distribuição Linux?

Imagine que o kernel Linux é o motor de um carro. Ele é essencial, mas sozinho não te leva a lugar nenhum. Falta a carroceria, os pedais, o volante, os bancos e o painel de controle. Essa estrutura completa é o que chamamos de distribuição Linux — um conjunto coeso de softwares (bibliotecas, utilitários, instaladores, interfaces, gerenciadores de pacotes) que tornam o Linux utilizável.

As distribuições são o “carro montado”, enquanto o kernel é apenas a peça central.

O cenário entre 1991 e 1993: caos criativo

Após a liberação do kernel Linux, usuários começaram a montar seus próprios sistemas juntando manualmente ferramentas GNU, shells, bibliotecas e scripts. A complexidade era enorme. Não havia um padrão de empacotamento, instalação ou configuração. Isso criava um ambiente de experimentação total — e de frustração.

Foi nesse contexto que nasceram as primeiras tentativas de “distribuir” o Linux de forma usável. A mais notória foi a SLS (Softlanding Linux System), lançada por Peter MacDonald em 1992. Era instável, desorganizada e cheia de pacotes quebrados — mas era a primeira.

Trecho de uma mensagem de 1993 em comp.os.linux:
“Instalei o SLS quatro vezes e ainda não consigo compilar um X funcionando. Está tudo quebrado.”

Essa insatisfação catalisaria o nascimento das primeiras distribuições Linux sérias: Slackware, Debian e Red Hat.

Slackware: o purismo técnico e a rebeldia filosófica de Patrick Volkerding

Fundador: Patrick Volkerding
Lançamento: julho de 1993
Base: SLS

Slackware nasceu como uma resposta direta ao colapso técnico da SLS. Patrick Volkerding, estudante de ciência da computação e usuário UNIX experiente, queria uma versão confiável, estável e limpa daquela bagunça. Criou o Slackware sozinho, compilando pacotes, corrigindo scripts, reempacotando ferramentas e removendo dependências quebradas.

Bastidores: humor ácido e crítica à seriedade do mundo open source

O nome “Slackware” foi inspirado na Igreja do SubGenius, uma sátira ao culto do trabalho e da produtividade. “Slack” é a ideia de viver em seus próprios termos, longe da lógica capitalista. Patrick usou o nome como uma provocação ao ambiente excessivamente formal do software livre.

Patrick Volkerding (em entrevista à Linux Journal):
“Eu queria que fosse funcional, mas também que refletisse minha visão pessoal. Slackware era, em parte, um manifesto.”

A quase distribuição oficial do Linux

Nos bastidores, há relatos de que Linus Torvalds usava Slackware em seus testes. Por sua estabilidade, chegou a ser cogitada informalmente como a “distribuição referência” para o kernel. Mas o próprio Torvalds recusou-se a endossar qualquer projeto como “oficial”, defendendo a neutralidade do kernel.

Linus Torvalds (em 1994):
“Não quero uma distribuição oficial. A força do Linux está na diversidade.”

O modelo técnico: controle absoluto

Slackware usava pacotes .tgz com scripts de instalação simples (installpkg, removepkg). Não havia resolução de dependências automática. Isso era deliberado.

installpkg kernel-source-1.1.59.tgz

Para os iniciantes, era como dirigir um carro esportivo sem assistência de direção: difícil, mas incrivelmente responsivo.

Reações da comunidade

Slackware foi adotada por administradores de sistemas e usuários UNIX que desprezavam automatismos. Mas críticos diziam que o projeto era obscuro, hostil a iniciantes e tecnicamente atrasado. A recusa em adotar systemd até hoje é vista como ato de resistência — e também motivo de isolamento.

Curiosidade histórica: Slackware e a NASA

Há relatos em fóruns técnicos de que sistemas de monitoramento e controle usados pela NASA nos anos 90 rodavam Slackware, pela sua estabilidade e previsibilidade.

Debian: a utopia comunitária e a batalha ética de Ian Murdock

Fundador: Ian Murdock
Lançamento: agosto de 1993
Base: Independente

Enquanto Slackware era mantida por um único indivíduo, o Debian nascia com uma proposta inédita: criar uma distribuição Linux comunitária, ética, auditável e duradoura. Ian Murdock, estudante da Purdue University, ficou frustrado com a instabilidade da SLS e a falta de estrutura nas distribuições.

Ian Murdock, em seu manifesto (1993):
“Debian será mantido e desenvolvido abertamente, de forma a permitir que qualquer um contribua.”

Nota: Após alguns anos o manifesto foi removido.

O embrião do contrato social do software livre

O Debian foi pioneiro em criar um modelo de governança democrático, estruturado em torno do Contrato Social Debian e das Diretrizes Debian de Software Livre (DFSG). Isso serviu de base filosófica para dezenas de projetos posteriores, inclusive a Open Source Initiative.

Modelo técnico: o nascimento do .deb e do APT

Nas primeiras versões, o Debian ainda não usava APT. O gerenciamento de pacotes era feito com scripts e ferramentas primitivas. Só a partir da versão 0.93 é que o .deb se consolidou e, anos depois, o APT revolucionou o gerenciamento de dependências:

apt-get install xserver-xorg

APT foi uma virada no ecossistema — seu impacto só seria rivalizado pelo surgimento do yum/dnf anos depois.

Conflitos históricos: Red Hat, LSB e a “guerra dos empacotadores”

Ian Murdock teve confrontos públicos com a Red Hat. Em 1996, acusou a empresa de tentar monopolizar o padrão de empacotamento por meio do .rpm e da manipulação do Linux Standards Base (LSB). Houve rumores (jamais comprovados) de que engenheiros da Red Hat pressionavam para que apenas o RPM fosse aceito no LSB.

Ian Murdock (em fórum Debian):
“A padronização não pode ser imposta por quem detém mais marketing. Isso é contra o espírito do Linux.”

Tragédia: a morte de Ian Murdock

Em 2015, Murdock morreu em circunstâncias misteriosas após alegar, pelo Twitter, ter sido agredido pela polícia americana. A tragédia chocou a comunidade. Ele havia sido executivo da Sun e da Docker, mas será lembrado como o arquiteto da ética no mundo Linux.

Red Hat: o pragmatismo de mercado e o nascimento do Linux corporativo

Fundadores: Marc Ewing e Bob Young
Lançamento: 1994
Base: Independente

A Red Hat foi a primeira a tratar o Linux como produto. Ewing criou uma distro baseada em suas preferências técnicas (o “Red Hat” era um chapéu que usava na universidade e o tornava conhecido como “o cara do UNIX”). Bob Young, empresário, entrou com a visão comercial.

Bob Young (1996):
“Queremos oferecer o Linux com manual, suporte técnico e previsibilidade. É isso que o mercado quer.”

Inovação técnica: o nascimento do .rpm

O .rpm foi o primeiro formato de empacotamento que combinava metadados, verificação de assinatura, scripts de pré/pós-instalação e integração com banco de dados de pacotes. Mais tarde, ferramentas como yum e dnf surgiram:

dnf install gnome-terminal

Reações da comunidade: corporatização e desconfiança

Enquanto Slackware e Debian eram mantidas por idealistas, a Red Hat já vendia CDs e suporte técnico. Muitos viam isso como uma traição ao ethos hacker. A tensão aumentou quando a Red Hat foi acusada de influenciar o LSB para forçar o .rpm como padrão.

Comentário no Slashdot (1999):
“A Red Hat quer ser a Microsoft do Linux. Precisamos ficar atentos.”

A ruptura: Fedora e RHEL

Em 2003, a Red Hat anunciou que descontinuaria o Red Hat Linux gratuito e o dividiria em RHEL (corporativo) e Fedora (comunitário). A comunidade reagiu com raiva.

Reação no IRC do #linux:
“Eles usaram a comunidade para crescer e agora nos largam. Fedora é só fachada.”

O Fedora, no entanto, provou seu valor e se tornou o laboratório upstream mais influente do Linux, sendo responsável por Wayland, systemd, PipeWire e outras inovações.

Comparativo das três distribuições

DistribuiçãoFundador(es)AnoGerenciador de PacotesFilosofiaReação da ComunidadeLegado
SlackwarePatrick Volkerding1993.tgz (installpkg)KISS, purismo UNIXCultuada por técnicos, rejeitada por iniciantesMais antiga distro ativa; símbolo da simplicidade
DebianIan Murdock1993.deb + APTÉtica, comunidade, liberdadeReverenciado; base para dezenas de distrosModelo de governança do software livre
Red HatMarc Ewing, Bob Young1994.rpm + dnfUsabilidade, mercado, padronizaçãoControversa no início; virou referênciaFundadora do modelo Linux corporativo

Conclusão: um ecossistema moldado em conflito, idealismo e pragmatismo

O nascimento das primeiras distribuições Linux não foi linear, pacífico nem técnico apenas. Foi uma colisão de filosofias, egos, visões de mundo e tensões políticas. Slackware, Debian e Red Hat moldaram os pilares do ecossistema Linux histórico — cada uma à sua maneira:

  • Slackware ensinou o valor da estabilidade, da simplicidade e da resistência.
  • Debian instituiu a ética, a transparência e a governança comunitária.
  • Red Hat profissionalizou o Linux e provou que o open source podia competir com o software proprietário — e vencer.

Essas distribuições não foram apenas sistemas. Foram movimentos ideológicos, sociais e técnicos. O Linux que conhecemos hoje carrega em seu DNA os conflitos, os ideais e as decisões de seus fundadores. Conhecer esses bastidores é entender por que o Linux é plural, resiliente e, acima de tudo, livre.

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