Crônica da revolução: como a década de 90 colocou o Linux no caminho para desafiar o Windows

Escrito por
Emanuel Negromonte
Emanuel Negromonte é Jornalista, Mestre em Tecnologia da Informação e atualmente cursa a segunda graduação em Engenharia de Software. Com 14 anos de experiência escrevendo sobre...

Como um e-mail em 1991 virou o estopim da maior revolução do software livre

A década de 90 foi o cenário de uma das maiores reviravoltas da história da computação: o nascimento e crescimento do Linux como alternativa real ao domínio absoluto do Windows. O que começou como um projeto acadêmico, modesto e despretensioso, tornou-se o alicerce de um movimento global de software livre, culminando na criação de sistemas robustos, comunidades apaixonadas e um novo paradigma de desenvolvimento colaborativo.

Neste artigo, vamos mergulhar fundo na década de 90 Linux, revelando os eventos, as distribuições, as guerras dos desktops e os desafios enfrentados por quem ousou desafiar os gigantes da indústria com base em um código aberto.

O cenário da computação nos anos 90: Windows reinava soberano

No início dos anos 90, os computadores pessoais estavam em expansão, mas ainda eram limitados, caros e dominados por um sistema: o Microsoft Windows. Com o lançamento do Windows 3.1 em 1992 e do revolucionário Windows 95 em 1995, a Microsoft consolidou seu domínio com uma interface gráfica amigável, grande compatibilidade com software comercial e acordos com fabricantes de hardware.

Ao mesmo tempo, a conectividade ainda era incipiente. A internet era uma promessa engatinhando entre modens barulhentos de 14.400 bps, acesso discado e serviços como BBS (Bulletin Board Systems), antecessores das redes sociais e fóruns atuais.

Sistemas alternativos, como OS/2 da IBM e UNIX comerciais, eram caros, fechados e difíceis de usar. O ambiente estava pronto para uma ruptura — mas ninguém esperava que ela viria de um estudante universitário.

O nascimento do Kernel Linux: um projeto de estudante ganha vida (1991-1993)

Em 25 de agosto de 1991, um jovem finlandês chamado Linus Torvalds publicou uma mensagem no grupo de discussão comp.os.minix anunciando um hobby: um kernel livre, inspirado no MINIX (um sistema educacional criado por Andrew Tanenbaum), mas com ambições maiores.

“Hello everybody out there using minix — I’m doing a (free) operating system (just a hobby, won’t be big and professional like gnu)…”

Nascia o Kernel Linux.

Influenciado pelas ferramentas do Projeto GNU, como compiladores, shell e utilitários, Linus optou por licenciar o projeto sob a GPL (General Public License) da Free Software Foundation em 1992, permitindo que qualquer pessoa pudesse estudar, modificar e redistribuir o código.

Isso transformou o Linux de um projeto pessoal em um esforço global. A comunidade começou a crescer rapidamente, trazendo novos contribuidores e gerando o embrião do que seriam as futuras distribuições.

As primeiras distribuições Linux: levando o Kernel ao usuário (1992-1995)

Um kernel, sozinho, não faz um sistema operacional. Era preciso empacotar o Kernel Linux com ferramentas GNU, scripts de instalação e uma estrutura de diretórios coerente. Foi assim que surgiram as primeiras distribuições Linux, base da história Linux anos 90.

Pioneiras que moldaram o uso do Linux:

  • Yggdrasil Linux/GNU/X (1992): a primeira distribuição live CD, que podia ser executada diretamente de um CD-ROM. Representou uma tentativa de tornar o Linux acessível a usuários comuns, mesmo sem instalação.
  • Slackware (1993): criada por Patrick Volkerding, foi a distro mais próxima do Unix tradicional. Usava scripts simples e um sistema manual de instalação.
  • Debian (1993): um marco em termos de governança comunitária e estabilidade. Fundada por Ian Murdock, ainda é referência em robustez.
  • Red Hat Linux (1994): com foco corporativo, foi a primeira a popularizar o conceito de RPM (Red Hat Package Manager), profissionalizando a entrega de pacotes.

Instalar essas distros era uma maratona técnica: era preciso particionar o HD com o fdisk, configurar o LILO, ajustar manualmente arquivos como fstab, e preparar a inicialização.

Para iniciantes: o que era tão difícil usar Linux nos anos 90?

Linux não era como clicar em “Avançar” cinco vezes. Tudo exigia comandos no teclado. Por exemplo, conectar-se à internet envolvia usar pppd com scripts de configuração, e instalar um ambiente gráfico exigia editar arquivos como /etc/X11/XF86Config.

Mesmo assim, iniciativas como o Linux Documentation Project (LDP) foram essenciais para ensinar milhares de usuários ao redor do mundo, com guias técnicos conhecidos como HOWTOs. Eles eram os tutoriais da época.

Termos desmistificados:

  • Kernel: o “motor” do sistema operacional, que conversa com o hardware.
  • Distribuição (distro): uma combinação do Kernel Linux com programas, bibliotecas e gerenciadores de pacotes.
  • GNU: conjunto de ferramentas (como bash, gcc, ls) criado por Richard Stallman para viabilizar um sistema 100% livre.
  • GPL: licença que garante que qualquer um pode estudar e modificar o software, desde que mantenha a mesma liberdade para os outros.
  • UNIX vs. Linux: enquanto o UNIX é um sistema fechado e proprietário, o Linux é um clone livre inspirado no UNIX, mas com base própria, compatível com seus padrões, mas sem código em comum.

A ascensão do desktop Linux e as “guerras” dos ambientes gráficos (1996-1999)

Com o amadurecimento do sistema, os usuários começaram a exigir mais do que uma tela preta com letras verdes. Surge então a necessidade de interfaces gráficas robustas.

O papel do X Window System

O X11, também conhecido como X Window System, foi o primeiro componente a permitir que ambientes gráficos rodassem no Linux. Era modular, poderoso, mas difícil de configurar.

KDE e a controvérsia da Qt

Em 1996, nasce o K Desktop Environment (KDE), que oferecia uma interface moderna com base no toolkit Qt. No entanto, a licença proprietária da Qt causou preocupações na comunidade de software livre.

GNOME: uma resposta ética

Em 1997, nasce o GNOME, criado por Miguel de Icaza e Federico Mena, com foco em licenciamento livre (usando o GTK+). Assim começavam as guerras dos desktops, com usuários se dividindo entre KDE e GNOME — uma disputa saudável que fomentou inovações.

Veja nosso artigo especial sobre as guerras dos desktops Linux.

A comunidade e a cultura open source se consolidam

Nos anos 90, não existia GitHub. A colaboração era feita por mailing lists, canal de IRC, e mirrors FTP. A mascote Tux, o pinguim criado por Larry Ewing em 1996, tornou-se símbolo dessa cultura vibrante.

Organizações como a Linux International, com apoio de figuras como Jon “maddog” Hall, ajudaram a promover o uso comercial do Linux e a aproximá-lo de governos e empresas.

A cultura do software livre, liderada por Richard Stallman, dividiu opiniões ao enfrentar o modelo de “open source” proposto por Eric Raymond e Bruce Perens, que focava nos benefícios práticos em vez da ética do código.

Linux como alternativa ao Windows: a percepção do mercado e da mídia

Mesmo com sua complexidade, o Linux começou a chamar atenção da mídia e da indústria.

Destaques do reconhecimento:

  • A revista Wired, o Linux Journal e a BusinessWeek passaram a cobrir o fenômeno do software livre.
  • Algumas empresas começaram a adotar Linux como servidor de arquivos, DNS e e-mail, onde a estabilidade era mais importante do que uma interface gráfica.
  • Empresas como HP, IBM e Dell começaram a oferecer suporte ao Linux em servidores, culminando no investimento de US$ 1 bilhão da IBM em 2000.

O Linux além do PC

Ainda no fim da década de 90, o Linux começou a aparecer em set-top boxes, roteadores e dispositivos embarcados, como o famoso Linksys WRT54G, antecipando sua onipresença futura.

Os obstáculos:

  • Falta de drivers compatíveis.
  • Pouca oferta de software comercial (não existia um Photoshop ou MS Office para Linux).
  • A curva de aprendizado era alta para o usuário comum.
  • A presença constante da linha de comando gerava receio em novos usuários.

O impacto e o legado da década de 90 no Linux

A década de 90 Linux moldou a alma do sistema: colaborativo, técnico, resiliente. O que começou como um projeto estudantil virou a base de 96% dos servidores de nuvem atuais, do sistema Android e do backbone da internet moderna.

As principais heranças:

  • Modelo de desenvolvimento aberto e meritocrático.
  • Comunidades descentralizadas e autossustentáveis.
  • A prova de que o software livre pode ser escalável, seguro e competitivo.

O Linux consolidou-se como alternativa viável ao Windows não porque copiou o modelo da Microsoft, mas porque desafiou o status quo com inovação, liberdade e comunidade.

Conclusão

A década de 90 Linux foi o berço de um movimento que transformou para sempre a computação. Nascido na universidade, o Linux não apenas sobreviveu em um ambiente hostil dominado pelo Windows, mas criou um novo caminho baseado em colaboração, ética e técnica.

Mais do que um sistema, o Linux se tornou um símbolo de resistência digital — e tudo começou com um e-mail em 1991.

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