O dia em que o Linux quase virou um sistema “pago” para supercomputadores: os bastidores da licença que não vingou

Escrito por
Emanuel Negromonte
Emanuel Negromonte é Jornalista, Mestre em Tecnologia da Informação e atualmente cursa a segunda graduação em Engenharia de Software. Com 14 anos de experiência escrevendo sobre...

Quando a liberdade do Linux foi ameaçada por interesses comerciais no mundo da supercomputação — e como a comunidade respondeu.

O Linux domina os supercomputadores do mundo. No ranking TOP500, que lista os sistemas de maior desempenho computacional do planeta, mais de 95% utilizam alguma variante do Linux. Mas poucos sabem que, em um momento decisivo da história, houve uma proposta concreta que poderia ter mudado esse destino: transformar o Linux em um sistema pago para supercomputadores.

Neste artigo, vamos explorar em profundidade o dia em que o Linux quase perdeu sua liberdade no setor de HPC (High Performance Computing), analisando os bastidores da tentativa de uma licença Linux HPC, os motivos de sua falha e o impacto crucial dessa decisão na história do Linux na supercomputação.

O cenário da supercomputação: um domínio proprietário antes do Linux

Supercomputadores: uma frota de carros de corrida computacional

Antes de entendermos a controvérsia, é preciso compreender o que é um supercomputador. Imagine uma frota de carros de Fórmula 1 trabalhando em sincronia para resolver problemas complexos — simulações meteorológicas, pesquisas nucleares, inteligência artificial. Essa frota, no mundo real, é composta por milhares de CPUs e GPUs conectadas, processando trilhões de cálculos por segundo.

Esses sistemas pertencem ao campo do HPC (High Performance Computing), uma área sensível a desempenho, custo e escalabilidade.

O domínio dos UNIX proprietários

Durante décadas, supercomputadores rodavam sistemas UNIX comerciais altamente especializados: AIX (IBM), IRIX (SGI), HP-UX, entre outros. Esses sistemas vinham com licenças caras, manutenção exclusiva e forte dependência do fornecedor. O resultado? Um ciclo de aprisionamento tecnológico.

O surgimento do Linux em HPC

Com o avanço do hardware x86_64 e a flexibilidade do Linux, pesquisadores começaram a criar clusters de alto desempenho com software livre. A linguagem secreta dos supercomputadores começava a mudar (leia mais aqui).

Um dos pontos de virada foi o nascimento dos clusters Beowulf, projeto iniciado por Donald Becker e Thomas Sterling, que demonstrou que era possível construir supercomputadores com hardware comum e Linux.

“Beowulf foi o cavalo de Troia do Linux na supercomputação. De repente, a porta estava aberta.”
— Donald Becker, IEEE, 1999

O Linux oferecia:

  • Custo zero de licenciamento
  • Código auditável e modificável
  • Escalabilidade sob controle do usuário
  • Comunidade ativa e colaborativa

Isso pavimentou o caminho para a revolução do Linux no TOP500.

A proposta polêmica: quando o Linux quase virou um sistema “pago” para HPC

Usuário surpreso ouvindo rumores de que o Linux quase virou um sistema pago para supercomputadores

Um modelo de cobrança para o Linux em supercomputadores

No início dos anos 2000, com o crescimento explosivo da adoção do Linux em ambientes HPC, surgiram propostas de monetização. Uma das mais controversas foi a ideia de criar uma licença Linux HPC, uma forma de cobrar pelo uso do Linux em supercomputadores, sem alterar seu uso tradicional em desktops e servidores comuns.

As propostas giravam em torno de:

  • Certificação compulsória para clusters Linux acima de X nós
  • Licenciamento dual: uso gratuito para fins gerais e pago para HPC
  • Cobrança proporcional à capacidade de processamento (ex: por nó, CPU ou TFlops)

As motivações por trás da proposta

  1. Sustentabilidade financeira: os proponentes alegavam que grandes empresas lucravam com o Linux em HPC, mas pouco retornavam à comunidade.
  2. Qualidade garantida: cobrar permitiria estabelecer SLAs (acordos de nível de serviço) e certificações oficiais.
  3. Concorrência com UNIX comerciais: a proposta buscava gerar receita nos mesmos moldes dos sistemas proprietários.
  4. Valorização do trabalho técnico: era visto como um “reconhecimento comercial” ao esforço dos desenvolvedores de kernel.

Tentativas paralelas: o caso da Silicon Graphics (SGI)

A SGI (Silicon Graphics Inc.), conhecida no mundo de HPC, tentou lançar uma versão do Linux para supercomputadores com trechos não auditáveis de código e restrições técnicas no uso em clusters massivos.

“Chamem do que quiserem, mas não é Linux se não podemos ver o código.”
— Linus Torvalds, LKML, 2001

Esse episódio acendeu o alerta sobre os riscos de desfigurar o modelo de código aberto com medidas “semi-proprietárias”.

Os bastidores da licença que não vingou: a reação da comunidade e de Linus Torvalds

A explosão na LKML e nos fóruns da comunidade

A proposta causou indignação na Linux Kernel Mailing List (LKML) e na comunidade internacional. Um dos primeiros a se opor foi Alan Cox, então o segundo maior mantenedor do Kernel:

“Cobrar pelo Kernel em função do poder computacional não é apenas antiético. É tecnicamente indefensável.”
— Alan Cox, LKML (2002)
Fonte: LKML.org

Linus Torvalds também rejeitou a ideia com firmeza:

“Não se pode cobrar por liberdade. O que vocês estão propondo é um fork comercial travestido de sustentabilidade. Isso não é o Linux.”
— Linus Torvalds, LKML, 2001
Fonte: LWN.net

Declarações da FSF e seus representantes

Eben Moglen, conselheiro jurídico da Free Software Foundation, explicou por que a GPL v2 tornava essa proposta inviável:

“A GPL não pode ser subvertida com métricas arbitrárias como número de CPUs. Isso fere a lógica do copyleft.”
— Eben Moglen, LinuxWorld 2002
Fonte: Internet Archive

Richard Stallman também criticou publicamente:

“Cobrar pelo uso do software livre com base em onde ele roda ou como é usado é um ataque disfarçado à liberdade do usuário.”
— Richard Stallman, OSNews, 2002

Por que a ideia falhou? Análise dos fatores que garantiram a liberdade do Linux em HPC

1. A proteção jurídica da GPL

A General Public License impede explicitamente a adição de restrições comerciais arbitrárias:

GPLv2, cláusula 6: “You may not impose any further restrictions on the recipients' exercise of the rights granted herein.”

2. A força da comunidade vigilante

A comunidade de desenvolvedores e usuários open source reagiu com força. O debate público desmantelou qualquer legitimidade da ideia antes que ela ganhasse tração.

3. O modelo de negócio baseado em serviços

Red Hat, SUSE e outras mostraram que é possível lucrar com suporte, consultoria e integração, sem travar o acesso ao código.

4. A crítica técnica de Greg Kroah-Hartman

“Qual o limiar? Dois nós? Mil? Um Beowulf caseiro? Não existe métrica neutra para isso.”
— Greg Kroah-Hartman, Open Source Summit 2004
Fonte: LWN.net

5. O alerta do modelo Sun Grid Engine

A Sun Microsystems, com o Sun Grid Engine, tentou criar um ecossistema HPC open source, mas com forte controle sobre roadmap e branding. Esse modelo serviu de exemplo do que poderia ter acontecido com o Linux caso aceitasse licenças restritivas.

“O SGE era livre no nome, mas preso nas práticas. O Linux se salvou de repetir esse erro.”
— Jonathan Corbet, LWN, 2005

O impacto na história Linux supercomputação: o pinguim no topo do TOP500

A consolidação do Linux em HPC

A recusa em criar um Linux sistema pago para supercomputadores permitiu que o sistema crescesse de forma orgânica, baseado em mérito técnico e liberdade.

O domínio atual do TOP500

Hoje, quase 100% dos supercomputadores do mundo rodam Linux.

AnoParticipação do Linux no TOP500
200013%
200573%
201091%
2020100%
202499.6%

O marco do Roadrunner

O supercomputador Roadrunner, o primeiro a atingir 1 petaflop (2008), rodava uma arquitetura híbrida baseada em Linux. Esse feito selou a confiança das agências governamentais na robustez do sistema livre.

“O Linux mostrou que podia escalar não só para o topo, mas também para a fronteira do desconhecido.”
— Thomas Zacharia, LANL

OpenHPC e Linux Foundation: a institucionalização da liberdade

A Linux Foundation e o OpenHPC consolidaram o modelo livre, oferecendo ferramentas e padronizações sem custo.

“A missão da Linux Foundation é garantir que o Linux nunca precise de uma licença para ser usado onde ele é mais necessário.”
— Jim Zemlin, 2016

“O futuro do HPC é aberto, modular e construído em cima da liberdade que o Linux proporciona.”
— Karl Schulz, SC16 Conference

Glossário analítico

  • GPL: Licença que garante liberdade de uso, modificação e redistribuição do software, impedindo qualquer imposição de restrições adicionais.
  • HPC: Computação de alto desempenho usada em supercomputadores. Equivale a uma frota de carros de corrida científica.
  • Beowulf: Modelo de cluster de PCs usando Linux para supercomputação, criado nos anos 90.
  • Dual licensing: Modelo em que um software é licenciado sob dois regimes — um livre, outro pago.
  • OpenHPC: Projeto comunitário que fornece pacotes e ferramentas para HPC com base no Linux.

Conclusão

O dia em que o Linux quase virou um sistema “pago” para supercomputadores é um marco histórico. A tentativa de estabelecer uma licença Linux HPC foi derrubada por uma combinação de resistência comunitária, força legal da GPL, posicionamento ético de desenvolvedores e visão estratégica de empresas conscientes. Aproveite e leia um outro artigo nosso, e conheça as melhores distribuições Linux de todos os tempos.

Graças a isso, o Linux permanece livre e soberano nos domínios mais exigentes da computação de alto desempenho. A história do Linux na supercomputação é uma demonstração do poder da liberdade de software — e uma lição sobre como resistir a tentações comerciais que podem corroer conquistas coletivas.

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