A Microsoft acaba de abrir ainda mais as portas da sua fortaleza digital. Em uma mudança histórica no seu programa de Bug Bounty, a empresa anunciou o modelo In Scope by Default: qualquer vulnerabilidade crítica que impacte diretamente seus serviços online passa a ser potencialmente elegível a recompensa, por padrão. Isso inclui falhas em código próprio, em software comercial de terceiros e em componentes open source, desde que afetem a nuvem da empresa e não haja outro programa de recompensa cobrindo aquele alvo.
Em termos simples, a mensagem é: se você encontrar um buraco relevante em qualquer parte do castelo da Microsoft, a empresa quer saber e está disposta a pagar. É uma virada importante no Microsoft Bug Bounty escopo, que passa a refletir melhor como os ataques reais acontecem.
Fim das listas restritas: tudo na nuvem entra no jogo
Até agora, os programas de Bug Bounty da Microsoft eram organizados em escopos específicos por produto ou serviço. Cada área tinha sua página, seus domínios permitidos, APIs autorizadas e uma lista precisa do que “contava” para recompensa. Isso deixava muitos pesquisadores em uma zona cinzenta: falhas graves em serviços novos, integrações periféricas ou dependências críticas podiam ser classificadas como “fora do escopo” e, portanto, não remuneradas.
Com o In Scope by Default, apresentado por Tom Gallagher, VP de Engenharia do Microsoft Security Response Center (MSRC), essa lógica é invertida. A nova regra matriz é clara: se uma vulnerabilidade for crítica e tiver impacto direto e comprovado em serviços online da Microsoft, ela entra na análise para recompensa, independentemente de quem seja o dono do código. Além disso, novos serviços online passam a estar no escopo desde o dia em que são lançados; não é mais preciso esperar atualização de páginas individuais de escopo.
Em um cenário em que nuvem e IA estão em tudo, faz sentido. Atacantes não leem documentação de escopo; eles exploram onde houver caminho.
Critérios práticos: o que realmente entra no “In Scope by Default”
A nova filosofia não significa que qualquer bug cosmético ou achado teórico gera recompensa. Na prática, a Microsoft reforça alguns critérios para o In Scope by Default:
- A vulnerabilidade precisa ser crítica (em alguns programas, crítica ou importante) e ter impacto direto e demonstrável em serviços online da Microsoft, como comprometimento de contas, execução remota de código, elevação de privilégios ou exfiltração de dados sensíveis.
- Não basta identificar uma biblioteca desatualizada; é necessário demonstrar um cenário de exploração plausível, normalmente com prova de conceito e cadeia de ataque minimamente clara.
- A empresa continua usando sua própria classificação de severidade para decidir elegibilidade e faixa de recompensa, integrando o programa aos princípios da Secure Future Initiative (SFI), que busca elevar o padrão de segurança em todo o ciclo de desenvolvimento.
Esse ajuste evita a frustração comum de pesquisadores que, no passado, encontravam falhas objetivamente perigosas, mas esbarravam em detalhes burocráticos de escopo.
Pagando por falhas de terceiros e de código open source
A parte mais ousada da mudança está justamente onde o código não é da Microsoft. A empresa reconhece que muitos dos ataques atuais nascem em dependências: bibliotecas open source, SDKs, componentes comerciais, serviços auxiliares e peças discretas de uma longa cadeia de suprimentos digital.
Pela nova política, se uma vulnerabilidade em software de terceiros ou em componente open source tiver impacto direto em serviços online da Microsoft e não existir um programa de Bug Bounty aplicável para aquele projeto, a própria Microsoft se compromete a pagar pela descoberta. O MSRC afirma que fará o necessário para remediar o problema, o que pode significar aplicar mitigação interna, contribuir com patches, apoiar o mantenedor ou ajustar a forma como aquele código é consumido na sua infraestrutura.
Na prática, isso fecha uma lacuna importante: bugs de cadeia de suprimentos que antes ficavam “sem dono” agora ganham um caminho claro de reporte, impacto e recompensa.
Do portão principal ao ecossistema: o novo conceito de escopo
A analogia do castelo ajuda a visualizar o salto de maturidade. Antes, muitos programas de Bug Bounty funcionavam como guardas focados apenas no portão principal: se o invasor entrasse por ali, o bug estava “dentro do escopo”. Se a entrada fosse por uma janela dos fundos (um serviço recém-lançado) ou pelo esgoto (uma dependência de terceiro), muitas vezes “não valia”.
Com o In Scope by Default, a Microsoft passa a tratar o castelo como um ecossistema inteiro. Se existe qualquer forma realista de um atacante entrar ou se movimentar dentro da fortaleza usando uma falha de software que impacte a nuvem da empresa, essa descoberta interessa e pode ser elegível a recompensa, independentemente de a brecha estar em código próprio, de parceiro ou em projeto open source mantido por voluntários.
É um alinhamento mais honesto com a forma como ameaças modernas se comportam.
Exemplos de cenários que ganham relevância
Para quem vive de encontrar bugs, vale traduzir essa filosofia em cenários práticos que agora têm mais probabilidade de serem premiados:
- Uma biblioteca open source usada em um serviço de autenticação ou de identidade da Microsoft que permite contornar mecanismos de login, sequestrar sessões ou fraudar tokens, mesmo que o bug esteja formalmente na biblioteca, não no código da Microsoft.
- Um componente de terceiros de billing, analytics ou suporte que, quando comprometido, permita movimentação lateral até dados de clientes hospedados em serviços de nuvem da Microsoft.
- Um SDK ou plug-in integrado a aplicativos corporativos que exponha endpoints que, na prática, abrem porta de entrada para serviços SaaS da Microsoft, com impacto direto em contas ou dados de clientes.
Em todos esses casos, o “bug nas bordas” deixaria de ser apenas um problema conceitual e passaria a ser monetizado dentro do novo Microsoft Bug Bounty escopo.
O que continua fora do escopo (mesmo com escopo ampliado)
Escopo ampliado não é escopo infinito. A empresa mantém um conjunto de exclusões clássicas e boas práticas de responsible disclosure:
- Ataques de engenharia social, phishing, spam ou fraudes puramente humanas.
- Ataques de negação de serviço (DDoS), brute force genérico e exploração de credenciais vazadas fora do contexto técnico da vulnerabilidade.
- Bugs puramente teóricos, sem impacto demonstrável, ou problemas de segurança física, disponibilidade geral ou questões de compliance não atreladas a vulnerabilidade técnica.
- Qualquer teste que envolva acesso deliberado a dados reais de clientes, exfiltração de informações sensíveis ou interrupção significativa de serviço.
Esse balanço mantém o programa focado em achados que ajudam a reforçar a infraestrutura sem colocar usuários em risco.
Como reportar uma vulnerabilidade In Scope by Default
Para transformar uma descoberta em recompensa, o caminho recomendado pela Microsoft segue um fluxo relativamente padronizado:
- Confirmar o impacto direto
Verificar se a falha realmente afeta um serviço online da Microsoft (por exemplo, Azure, M365, Copilot, Dynamics, serviços de identidade ou outros componentes de nuvem expostos a clientes). - Checar programas existentes
Verificar se o projeto de terceiros ou o componente open source afetado já possui um programa de Bug Bounty próprio ou se está coberto por outro programa. Quando não houver programa aplicável, o modelo In Scope by Default entra como rota de recompensa. - Preparar um relatório sólido
Montar um relatório com passos de reprodução, prova de conceito, cenário de ataque e explicação clara do impacto na nuvem da Microsoft. Quando for supply chain, deixar explícito o caminho: da falha na dependência até o efeito em serviço Microsoft. - Seguir as regras de engajamento
Ler e respeitar as regras de engajamento do MSRC, que abordam limites de testes, proteção de dados de clientes e requisitos de divulgação coordenada (Coordinated Vulnerability Disclosure). - Submeter via portal do MSRC
Enviar o relatório pelo portal oficial do MSRC, que faz a triagem, aplica a classificação de severidade e, se elegível, atribui a recompensa dentro das faixas definidas para cada categoria.
Esse passo a passo transforma o artigo em referência prática para quem avalia onde investir seu tempo de pesquisa.
Incentivos financeiros e prioridades de pesquisa
A mudança de escopo não vem do nada; ela se apoia em um histórico crescente de investimento financeiro em Bug Bounty. No ano mais recente de referência, a Microsoft pagou cerca de US$ 17 milhões em recompensas a 344 pesquisadores, distribuídos em dezenas de países, com mais de mil vulnerabilidades elegíveis resolvidas.
Algumas áreas de pesquisa já são conhecidas por atrair os maiores pagamentos, como vulnerabilidades críticas em Hyper-V, componentes de isolamento de workloads na nuvem e cadeias de ataque complexas em Azure e serviços de identidade, com prêmios individuais que podem chegar à faixa de centenas de milhares de dólares.
Com o In Scope by Default, a tendência é que pesquisas focadas em pontos menos óbvios, como integrações, superfícies de “cola” entre serviços e dependências de supply chain, passem a disputar essas faixas de recompensa, já que refletem melhor o tipo de ataque que hoje preocupa grandes provedores de nuvem.
Peça de um movimento maior: Secure Future Initiative
O anúncio do In Scope by Default não é isolado; ele se encaixa na narrativa mais ampla da Secure Future Initiative (SFI), o compromisso multianual da Microsoft de colocar segurança em primeiro lugar em como ela projeta, constrói, testa e opera seus produtos.
Nos relatórios recentes da SFI, a empresa destaca avanços em triagem automatizada de vulnerabilidades, publicação mais transparente de CVEs, inclusive para falhas em nuvem corrigidas automaticamente, e aumento da colaboração com a comunidade de pesquisa. O volume de CVEs publicados e o valor pago em Bug Bounty aparecem como sinais de engajamento e não como fragilidade, em uma tentativa deliberada de elevar o padrão de transparência da indústria.
Ao alinhar o Microsoft Bug Bounty escopo a essa visão, a empresa reforça que não se trata apenas de pagar por bugs, mas de usar essas descobertas como radar para onde investir mais engenharia defensiva.
Por que isso importa para a comunidade e para o mercado
Para a comunidade de segurança, a nova política reduz atrito e aumenta clareza. Pesquisadores deixam de perder tempo debatendo fronteiras artificiais e podem se concentrar em uma pergunta simples: “esta vulnerabilidade realmente coloca clientes em risco na nuvem da Microsoft?”. Se a resposta for sim, há um caminho bem definido para recompensa.
Para o mercado, o recado é ainda mais amplo. Em um mundo em que dependências open source e cadeias de suprimentos complexas são a regra, programas de Bug Bounty que olham apenas para produtos isolados tendem a ficar obsoletos. Ao abraçar o In Scope by Default, a Microsoft transforma sua fortaleza em um ecossistema aberto à colaboração de quem, todos os dias, tenta pensar como o atacante, mas escolhe atuar do lado certo da história.
