Crônica da resistência: como a Microsoft tentou matar o Linux e criou, sem querer, seu maior rival

Escrito por
Emanuel Negromonte
Emanuel Negromonte é Jornalista, Mestre em Tecnologia da Informação e atualmente cursa a segunda graduação em Engenharia de Software. Com 14 anos de experiência escrevendo sobre...

A história real da guerra entre Microsoft e Linux — e como o pinguim venceu com código aberto, comunidade e resiliência.

Nos anos 90, a Microsoft reinava absoluta no mercado de software. O Windows dominava desktops e servidores, e sua cultura de negócios agressiva parecia inabalável. Mas, silenciosamente, um projeto comunitário chamado Linux começava a ganhar força. Ele representava não apenas uma alternativa tecnológica, mas também uma visão de mundo oposta: liberdade, colaboração, transparência.

A resposta da Microsoft foi implacável. Neste artigo, faremos um mergulho profundo na história de quando a Microsoft tentou matar Linux, detalhando as estratégias Microsoft contra Linux e revelando como, contra todas as expectativas, o Linux sobreviveu e prosperou — a ponto de virar o motor da era da nuvem.

O cenário inicial: a ascensão do Linux como ameaça

O nascimento de um oponente improvável

O Linux começou como um projeto pessoal de Linus Torvalds em 1991, mas ganhou tração durante o auge da “bolha da internet” (1995–2001), quando provedores e startups precisavam de soluções escaláveis, gratuitas e confiáveis para rodar seus servidores. Enquanto a Microsoft focava no mercado desktop, o Linux conquistava a web silenciosamente.

Percepção da Microsoft

Inicialmente subestimado, o Linux logo foi visto como ameaça. A opinião da cúpula da Microsoft ficou registrada em frases históricas, como a declaração de Steve Ballmer, CEO da empresa à época, em 2001:

“Linux is a cancer that attaches itself in an intellectual property sense to everything it touches.”

Essa declaração não foi isolada. Os Halloween Documents, memorandos internos vazados em 1998, revelavam que a Microsoft via o Linux e o software livre como inimigos estratégicos e delineava planos para enfraquecê-los.

Para iniciantes: o que é o Linux?

Linux é um sistema operacional de código aberto, ou seja, seu “motor” é transparente e colaborativo. Imagine que o Windows é como um carro com o capô trancado: você dirige, mas não pode ver como funciona. Já o Linux é um carro com capô aberto — qualquer um pode estudar, modificar, consertar ou melhorar. Isso permite liberdade e inovação muito além do que sistemas fechados oferecem. Saiba mais sobre a segurança do código aberto e a filosofia e diferenças do código aberto vs software livre.

As estratégias Microsoft contra Linux: FUD, patentes e táticas anticompetitivas

Diante do avanço do Linux em áreas críticas como servidores e supercomputadores, a Microsoft adotou diversas estratégias contra o Linux, usando desde propaganda até litígios, acordos obscuros e obstáculos técnicos.

1. A campanha FUD (Fear, Uncertainty and Doubt)

FUD significa “medo, incerteza e dúvida” — uma tática usada para enfraquecer concorrentes com mensagens que insinuam riscos. A Microsoft usou FUD para desacreditar o Linux, afirmando que ele era instável, inseguro e violava patentes.

Exemplos marcantes:

  • Halloween Documents: revelavam planos para “abraçar, estender e extinguir” padrões abertos.
  • Campanha “Get the Facts” (2003–2007): série de propagandas e white papers pagos comparando Windows com Linux sob premissas manipuladas.

O que é “embrace, extend, extinguish”?

Essa era uma estratégia explícita da Microsoft: abraçar um padrão aberto, estender com funcionalidades proprietárias e extinguir a concorrência, tornando o padrão incompatível com alternativas como o Linux. Foi aplicado em protocolos como SMB/CIFS (compartilhamento de arquivos) e navegadores com o Internet Explorer.

2. Guerras de patentes e o caso SCO vs. Linux

Em 2003, a empresa SCO processou a IBM, alegando que o Linux violava sua propriedade intelectual. Embora o caso não tenha tido mérito técnico, ele gerou medo de adoção empresarial.

Microsoft e Novell: o acordo de 2006

A Microsoft firmou um polêmico acordo com a Novell (distribuidora do SUSE Linux) garantindo “proteção legal” aos usuários da Novell contra eventuais violações de patentes. A mensagem implícita era: usar outras distros pode ser arriscado. A comunidade reagiu fortemente, vendo isso como tentativa de dividir o ecossistema Linux.

3. Restrições de interoperabilidade

A Microsoft dificultou o uso de formatos e protocolos com Linux. Exemplos:

  • Documentos Word com formato proprietário .doc, alterados entre versões.
  • Protocolos de rede como SMB e Active Directory, sem documentação pública.
  • Tentativa de impor o formato Office Open XML como padrão ISO, contra o OpenDocument Format (ODF) usado pelo LibreOffice.

Essas práticas criavam obstáculos técnicos e desestimulavam empresas a migrarem para soluções abertas.

4. Obstáculos técnicos e sabotagens sutis

Durante a era do Secure Boot via UEFI, a Microsoft exigia que PCs com Windows pré-instalado tivessem assinatura criptográfica, o que impedia o boot de sistemas Linux, a menos que o usuário desativasse manualmente a função (algo escondido ou ausente em alguns firmwares).

Também foram comuns drivers proprietários de hardware com documentação restrita, dificultando o suporte no Linux.

5. Pressão sobre OEMs e o mercado

A Microsoft fechava contratos com fabricantes (OEMs) que exigiam exclusividade do Windows. Isso impedia que máquinas fossem vendidas com Linux ou mesmo sem sistema operacional, especialmente na América Latina e Ásia.

6. Discurso contraditório

Ao longo dos anos, a Microsoft alternou entre ignorar, atacar e tentar se aproximar do Linux — sempre guiada por estratégia de mercado. O discurso público variava conforme o risco competitivo.

A resiliência do pinguim: como o Linux sobreviveu e prosperou

Apesar da pressão, o Linux resistiu — e floresceu. Abaixo, analisamos os principais fatores dessa vitória.

1. A força da comunidade e da filosofia aberta

Desenvolvedores do mundo inteiro colaboram com o Linux. Essa “inteligência coletiva” permitiu corrigir bugs rapidamente, inovar em segurança e criar ferramentas sob demanda. Empresas como IBM, Red Hat, Canonical, Google, Oracle e outras injetaram recursos e desenvolveram soluções baseadas em Linux.

Em 2001, a IBM anunciou um investimento de US$ 1 bilhão no Linux — um divisor de águas para sua legitimidade no setor corporativo.

2. Domínio em servidores e supercomputadores

Hoje, mais de 90% dos servidores da web e 100% dos 500 supercomputadores mais potentes do mundo rodam Linux (Top500.org). Isso aconteceu graças à sua escalabilidade, modularidade e custo zero de licenciamento.

3. A ascensão do Android

O Android, baseado no Kernel Linux, domina o mercado global de smartphones, com mais de 70% de participação. Isso levou o Linux ao bolso de bilhões de pessoas.

4. Papel das distribuições

Distribuições como Ubuntu, Debian, Fedora, Arch e outras democratizaram o uso do Linux. Como mostramos neste artigo, elas facilitam a instalação, atualização e personalização do sistema.

A reconciliação: de inimigo a “amigo” do Linux

Em 2014, com a chegada de Satya Nadella, a Microsoft passou por uma transformação cultural e estratégica. Em vez de combater, passou a colaborar com o Linux.

1. Microsoft Azure e o “Microsoft loves Linux”

O Azure, plataforma de nuvem da Microsoft, passou a rodar distribuições Linux com suporte oficial. Em 2017, mais da metade das instâncias do Azure já rodavam Linux. Hoje, esse número ultrapassa 60%.

2. Windows Subsystem for Linux (WSL)

Lançado em 2016, o WSL permite rodar distribuições Linux no Windows de forma integrada. A versão 2 (WSL2) usa virtualização e o Kernel Linux real.

Importante: WSL1 era apenas uma camada de compatibilidade — sem Kernel. O WSL2 trouxe o Kernel completo, consolidando o Linux no centro da experiência de desenvolvedores Windows.

3. SQL Server, Edge, VS Code e .NET Core no Linux

A Microsoft portou diversas ferramentas ao Linux:

  • SQL Server (2017)
  • Visual Studio Code (nativo e open source)
  • Microsoft Edge para Linux
  • .NET Core, hoje plataforma multiplataforma

4. Microsoft entra para a Linux Foundation

Em 2016, a Microsoft tornou-se Platinum Member da Linux Foundation. Uma reviravolta simbólica — de vilã a patrocinadora do ecossistema Linux.

5. GitHub e Copilot: integração e dilemas

Com a compra do GitHub em 2018 e o lançamento do Copilot, a Microsoft tornou-se parte central do ecossistema open source. Mas essa integração também levanta novos debates sobre controle, ética e propriedade intelectual do código colaborativo.

O legado da guerra: lições de uma batalha histórica

1. O software livre venceu — mas continua em alerta

A resistência do Linux provou que um modelo aberto e colaborativo pode não só competir como vencer gigantes. Mas a vigilância deve continuar — a dependência de plataformas (como GitHub ou Azure) exige atenção contínua.

2. Concorrência estimula inovação

A guerra forçou ambos os lados a evoluírem: a Microsoft modernizou seu código, investiu em interoperabilidade, e o Linux amadureceu em governança, usabilidade e suporte corporativo.

3. A importância de princípios e comunidade

O Linux sobreviveu e prosperou porque tinha uma comunidade engajada, princípios sólidos e um ecossistema resiliente. Não foi um software apenas — foi um movimento.

4. O Linux é o novo pilar da era digital

Hoje, a infraestrutura da internet, da nuvem, de dispositivos embarcados, de carros autônomos e da inteligência artificial roda sobre o Linux.

Glossário analítico

  • Código aberto: Software cujo código-fonte pode ser examinado, modificado e redistribuído livremente.
  • FUD (Fear, Uncertainty, Doubt): Estratégia de espalhar medo e incerteza sobre concorrentes.
  • EEE (Embrace, Extend, Extinguish): Estratégia de absorver padrões, estendê-los com proprietarismo e eliminar alternativas.
  • Secure Boot: Mecanismo de segurança que pode dificultar a inicialização de sistemas não-Windows.
  • OEM: Fabricante de PCs (como Dell, Lenovo) que instala sistemas operacionais em máquinas de fábrica.
  • Kernel: Coração do sistema operacional, responsável por intermediar o hardware e os aplicativos.
  • WSL: Camada de compatibilidade da Microsoft que permite rodar Linux dentro do Windows.
  • Distribuição Linux: Sistema Linux completo com instalador, gerenciador de pacotes e ambiente gráfico.
  • GitHub/Copilot: Plataforma de hospedagem de código e ferramenta de IA desenvolvida pela Microsoft, com base em projetos open source.

Conclusão

Esta é a história de como a Microsoft tentou matar o Linux, com uma série de estratégias anticompetitivas, pressões de mercado e campanhas de desinformação. Mas o Linux resistiu — e venceu. Não apenas sobreviveu, mas transformou-se na base da infraestrutura digital moderna.

Hoje, as duas tecnologias coexistem, mas o legado dessa guerra mostra que colaboração, transparência e liberdade são forças poderosas. O pinguim não só enfrentou o império, como conquistou o mundo. E continua evoluindo, com a comunidade como sua maior aliada.

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